Dois anos e muita história para contar – Parte 1

Um resumo de dois anos com MSF em dois países e três projetos diferentes

Dois anos e muita história para contar - Parte 1

A arquiteta Viviane Mastrangelo conta, num relato escrito em 01 de setembro, como foram seus dois anos trabalhando com MSF em três diferentes missões. Neste texto, ela fala sobre as duas primeiras experiências, na República Centro-Africana. Não perca no próximo domingo seu relato sobre o Sudão do Sul e suas reflexões sobre o que aprendeu nesse tempo trabalhando com ajuda humanitária. 

Hoje fazem exatos dois anos do dia em que embarquei para o meu primeiro trabalho com Médicos Sem Fronteiras. Por mais clichê que pareça, tanta coisa mudou nesse tempo que eu realmente me sinto outra pessoa e acho que vale contar um pouco do que se passou nesse meio tempo.

Nesse período, fui enviada para três projetos diferentes, em dois países. O primeiro em Bangassou, no sudeste da República Centro-Africana, o segundo em Bangui, capital do mesmo país e o terceiro em Maban, em um campo de refugiados no noroeste do Sudão do Sul. Um total de 18 meses fora de casa, mais quase um mês em treinamento dado por MSF, incontáveis vôos e conexões pelo mundo e, de acordo com minha mãe, um número insuficiente de mensagens de texto e ligações para casa.

Além da diferença óbvia por estarem em países diferentes, com línguas diferentes – na RCA a língua oficial é o francês e no Sudão do Sul falávamos inglês – pude identificar algumas diferenças mais sutis.

Bangassou, que foi minha primeira missão, fica numa região que até então era conhecida por todos nós como um paraíso, tendo em comparação os contextos em que MSF normalmente atua. Apesar de um histórico de grande violência entre 2013 e 2014, enquanto estava em Bangassou a situação era relativamente calma. Fui enviada para lá na posição de arquiteta para preparar o que chamamos de masterplan, que consiste num conjunto de plantas e cronogramas onde definimos todo o trabalho de reabilitação e construção necessária para expansão e melhorias do Hospital Regional Universitário de Bangassou. Como não tínhamos na época problemas de segurança, podíamos ir andando de casa ao trabalho, fazer trilhas no fim de semana, frequentar os quatro bares existentes na cidade. E tudo isso com uma proximidade incrível do staff e da população local. Para o trabalho, as maiores dificuldades que encontrei em Bangassou foram a dificuldade de acesso e a falta de mão-de-obra qualificada. Por estar longe da capital, poucas eram as pessoas com uma educação profissionalizante e menos ainda as com ensino médio completo. Além disso, a região era praticamente inacessível por caminhão durante a temporada de chuvas e, mesmo na temporada seca, os caminhões são alvo de assaltos constantemente, o que dificultava em muito a construção. Hoje, Bangassou já não é mais esse paraíso.

Em março deste ano a cidade foi tomada por uma onda de violência, que se intensificou em maio, e boa parte da população havia se refugiou na mata, incluindo aí muitos dos nossos profissionais e seus familiares. O mesmo hospital onde trabalhei foi invadido e um paciente e seu acompanhante foram retirados à força de lá e assassinados. Foi com muita dor que recebi essas notícias, pois Bangassou é realmente um projeto que ficou marcado no coração. O primeiro de muitos!

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Minha segunda missão foi em Bangui. Mesmo país, mas na capital. O gostoso foi já chegar conhecendo uma parte dos profissionais e a cultura local, como comida e danças. Muito mais fácil ir para um lugar onde você já sabe como o aeroporto funciona, onde fica o escritório e a casa onde você vai morar pelos próximos seis meses. E também coisas práticas de MSF, como as regras de segurança ou simplesmente o que você precisa fazer para conseguir uma caneta no almoxarifado.

Nesse trabalho eu não fui como arquiteta, mas como logística. Esse termo para nós não é exatamente a logística que todo mundo conhece e, para facilitar a explicação, eu chamo carinhosamente de “faz tudo”. A logística é responsável pelo suporte à equipe médica e o conforto e bem-estar dos pacientes, ficando responsável pela montagem e manutenção do local de trabalho, pela equipe de vigias, limpeza, tratamento de lixo, eletricidade e por aí vai. Eu pedi essa vaga para entender melhor como funcionam nossos hospitais e por consequência fazer melhores projetos no futuro. Eu fui trabalhar como logística de uma clínica dentro do campo de deslocados internos localizado na área do aeroporto de Mpoko. Hoje, o campo fechou, mas entre junho e dezembro de 2016 tínhamos em torno de 22 mil refugiados. Nos momentos de pico, o campo chegou a ter 100 mil pessoas. Esse era um projeto com uma equipe pequena de profissionais internacionais, apenas cinco, porém em torno de 170 profissionais locais que já trabalhavam há anos com MSF. Por ter sido fora da minha área de experiência profissional, posso dizer que para as questões técnicas do dia a dia, aprendi mais com eles do que eles comigo.

Estar na capital tinha suas vantagens e desvantagens. Por um lado, a maior parte do material que precisávamos para trabalhar estava de fácil acesso e em poucos dias era possível conseguir tudo necessário, além de confortos básicos como ir a um restaurante no fim de semana ou ter um vaso sanitário “tradicional” em casa. Por outro lado, não tínhamos autorização para ir a diversas áreas da cidade por questão de segurança, além de só podermos andar de carro. Isso dificulta bastante um contato mais próximo com a população local e até mesmo com os nossos profissionais de lá. Mas também guardo esse projeto com muito carinho. Foi a primeira vez que tive uma equipe tão grande sob minha supervisão, num total de 70 funcionários. Passei por momentos de frustração, de stress, mas acho que no fim conseguimos crescer juntos. Apesar de o projeto ter fechado, acabo acompanhando a vida de alguns pelas redes sociais e vi que muitos continuam trabalhando com MSF em outros projetos. Isso é muito gratificante de ver.

A segunda parte do diário de bordo de Viviane já está disponível! Para conferir clique aqui.

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