A jornada migratória de uma família nas Américas

Durante a travessia pelo Darién - uma perigosa faixa de 100 km de selva entre o Panamá e a Colômbia - migrantes precisam passar pelos rios Acandí e Tuquesa. © Juan Carlos Tomasi/MSF
Durante a travessia pelo Darién - uma perigosa faixa de 100 km de selva entre o Panamá e a Colômbia - migrantes precisam passar pelos rios Acandí e Tuquesa. © Juan Carlos Tomasi/MSF

Carolina Mueller trabalhou como gerente de assuntos humanitários de MSF na América Central e no México; ela relata* a história de uma das famílias atendidas por nossas equipes na região

 

Se você tivesse 60 segundos para fugir de casa, o que levaria com você?

Pense nisso por um momento. Feche os olhos e imagine a cena. Tiros ao fundo, o chão tremendo sob seus pés, a fumaça preenchendo o ar e o medo pulsando em seu coração. E você tem apenas alguns segundos para decidir.

Alguns podem pegar uma foto especial da família, o brinquedo favorito de seu filho. Outros podem juntar uma muda de roupas, algum dinheiro. Mas e se, naquele momento, você tivesse que deixar tudo para trás? Tudo o que define sua vida e sua identidade?

Laura

Laura é uma jovem mãe de três filhos, que tive o privilégio de conhecer em Esquipulas, uma pequena cidade na fronteira entre Guatemala e Honduras. Lá, MSF disponibiliza assistência médico-humanitária para pessoas em suas jornadas migratórias.

Como gerente de assuntos humanitários, eu apoiei as equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) a entender a complexa situação que as pessoas enfrentam, suas necessidades e realidades.

Laura e seus filhos haviam escapado recentemente do pequeno vilarejo onde moravam na Venezuela por causa da violência. Seus filhos tinham quatro, oito e onze anos.

Quando as ameaças na Venezuela se tornaram reais e ela teve apenas alguns segundos para decidir, Laura reuniu seus filhos e arrumou uma pequena mochila. Com algumas roupas, água, um pouco de dinheiro, Laura carregava a esperança de encontrar um futuro melhor.

Quando partiram, Laura não tinha ideia de onde ir. Sua vila não era mais segura, e as pessoas que conhecia de outras áreas da Venezuela também estavam em risco. A única opção era era partir rumo ao desconhecido.

Dificuldades inimagináveis

Quando Laura me contou sobre a jornada que ela e os filhos fizeram para chegar a Esquipulas, ficou claro que a família precisou enfrentar dificuldades inimagináveis. Viajando por horas e horas, de ônibus em ônibus, de vilarejo em vilarejo, de país em país.

Quando ficaram sem dinheiro, tiveram que andar por quilômetros. Eles atravessaram o Darién, uma famosa faixa de 100 km de selva entre o Panamá e a Colômbia, a pé. Laura me contou sobre as histórias que ouvira de pessoas se afogando, sendo sequestradas ou atacadas por jaguares.

Quando conheci Laura e seus filhos pela primeira vez na Guatemala, eles já haviam cruzado cinco países. Durante todo esse percurso, Laura era movida por um forte desejo de um futuro melhor para seus filhos, em um lugar onde eles pudessem ir à escola e sonhar sem medo.

Apoio em uma terra desconhecida

Por meio do projeto de MSF em Esquipulas, Laura finalmente conseguiu atendimento médico para cuidar dos pés dela, que precisavam urgentemente de tratamento após caminhar horas sem fim. A equipe de saúde mental forneceu assistência psicológica para as crianças, que testemunharam muitos momentos de crueldade na rota. A equipe garantiu que a família tomasse banho, além de receber roupas e kits de higiene.

A iniciativa de MSF na Guatemala faz parte de uma resposta regional maior às inúmeras famílias que precisam sair de seus países em busca de um lugar mais seguro para morar.

Laura, como recém-chegada ao país, tinha pouco conhecimento de onde era seguro e como encontrar apoio. Então, como parte do meu papel, falei com ela e a guiei um pouco naquela terra desconhecida.

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Quando me despedi de Laura naquele dia, ela fazia as malas e se certificava de que seus filhos estavam bem para continuar a jornada. Não pensei que a veria novamente.

Cidade do México

Alguns meses depois, eu estava na Cidade do México visitando outro projeto de MSF que apoia pessoas em movimento.

Conhecia um dos assentamentos informais, ouvindo sobre as lutas das pessoas que ali estavam: noites cheias de perigo, a falta de acesso à água e os custos de acesso até mesmo aos serviços básicos.

De repente, ouvi uma voz: “Ei! Eu te conheço da Guatemala.”

Quando me virei, não pude acreditar no que via. Eram Laura e seus filhos.

A jornada de Laura

Sentamos do lado de fora da barraca improvisada em que a família vivia e conversamos. Laura me contou que quando nos despedimos na Guatemala, ela esperava que as coisas melhorassem. Ela tinha esperança.

No entanto, Laura enfrentou mais ameaças, mais violência e a possibilidade de ser separada dos filhos. Eles suportaram noites frias com comida limitada e abrigos superlotados.

Quando finalmente chegaram à Cidade do México, Laura disse que tinha sentimentos mistos. Por um lado, ela estava aliviada por finalmente chegar à capital mexicana, por estar em um lugar onde poderia solicitar novamente os documentos que havia perdido na estrada. Mas, ao mesmo tempo, sentia desespero com a incerteza do que estava por vir.

Enquanto Laura e eu conversávamos do lado de fora da pequena barraca, lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto enquanto ela se abria sobre seus medos mais profundos por seus filhos e pelo futuro. Ela contou como estavam na Cidade do México há mais de um mês, em uma batalha diária por comida e água.

Depois da nossa conversa, eu apresentei Laura à equipe de MSF no acampamento para que lhe pudessem oferecer assistência médica e humanitária.

Mas, honestamente, encontrá-la lá novamente depois de meses separadas foi de partir o coração. Eu não esperava vê-la em uma condição tão cruel e complicada, e me preocupava que sua força, que parecia inabalável, estivesse se desgastando a cada dia.

Esperança de um amanhã melhor

Então, pergunto novamente: se você tivesse 60 segundos para fugir de sua casa, o que levaria com você?

Para muitas pessoas migrando, não são apenas objetos. Elas carregam a esperança de um amanhã melhor. A história de Laura é um lembrete da realidade enfrentada por mais de meio milhão de pessoas a cada ano nas Américas, que fogem da violência, da perseguição política e da insegurança.

Há mais de uma década, MSF fornece assistência humanitária na região. O apoio de doadores vem tornando isso possível. A contribuição de milhões de pessoas no mundo ajuda a entregar água, kits de higiene, assistência médica, consultas de saúde mental e serviços sociais para as pessoas.

Naquele dia, no México, antes de me despedir pela segunda vez de Laura, ela compartilhou como pequenos atos de bondade de estranhos e o apoio da equipe de MSF lhe deram a resiliência de que ela precisa para seguir com esperança em um futuro melhor.

Esse é o impacto de uma doação, que ajuda famílias como a de Laura e garante que possamos levar um pouco de esperança para as pessoas que anseiam por segurança.

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*Texto redigido originalmente para um evento de MSF UK em novembro de 2024.

 

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