A vida acontece no aqui e agora: minha homenagem às vítimas de Petrópolis

Foto: Arquivo pessoal

Antes de relatar um pouco sobre como foi a atuação de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no município de Petrópolis, farei um breve retorno ao tempo: janeiro de 2011. À época, eu era recém-formada em psicologia e residia em minha cidade natal, Nova Friburgo, também localizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o meu município passou por um grave desastre socioambiental em função das fortes chuvas, alagamentos e deslizamentos de terra, causando enorme impacto e trauma para todos nós. Como não sofri danos diretos, ofereci-me como voluntária naquele contexto e foi então que tive contato pela primeira vez com uma equipe de saúde mental de MSF. Foram dois dias intensos de treinamento sobre atuação em situações de emergências e desastres com as psicólogas Letícia Nolasco e Débora Noal.

Enquanto eu assimilava cada conteúdo ministrado por elas, paralelamente sentia que acabara de descobrir o que eu desejava ser dali para frente. Eu ansiava por dar continuidade naquele tipo de intervenção psicossocial, que envolvia a atuação de forma ampla e coletiva – e não apenas individual, como aprendera na graduação em psicologia. Fiquei encantada com este tipo de trabalho, o que me inspirou e mudou toda a minha trajetória profissional. Passei a estudar o sistema público de saúde e a me envolver com este tipo de questões até que, em 2020, eu então integrava também MSF. Desta forma, agora, em fevereiro de 2022, novamente nesta região serrana fluminense, sofremos com eventos semelhantes ao que me trouxeram aqui. Desta vez, o município mais atingido foi Petrópolis, e eu pude estar no papel de membro de MSF (e então colega das pessoas que me treinaram em 2011, trabalhando com Letícia no território e contando com o apoio técnico de Débora), que ofereceria capacitação e apoio aos profissionais de saúde, voluntários e lideranças comunitárias locais, parecendo para mim o fechar de um ciclo ao ter a oportunidade de devolver tudo o que aprendi em 2011.

No dia 15 de fevereiro de 2022, o município de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, foi atingido por chuvas intensas. A elevação e o transbordamento de rios e cursos d’água atingiram milhares de pessoas, causando danos, perdas de vidas e interrupção de vias em vários bairros. Como o município contava com rede de saúde pública bem consolidada, o projeto de MSF teve como objetivo apoiar a capacidade local do setor saúde na gestão das demandas de saúde mental e atenção psicossocial provenientes da situação de calamidade pública decretada pelo município. Dentre os temas abordados, destaco: a evitação da patologização da população atingida; o manejo do luto adulto e infanto-juvenil; o retorno às aulas; o cuidado da população em situação de vulnerabilidade; primeiros cuidados psicológicos e autocuidado de trabalhadores e voluntários.

Alinhados ao desenho do projeto, caminhávamos para a última semana de atuação no território e, para nossa surpresa, no dia 20 de março, a cidade foi novamente atingida por uma chuva torrencial que durou 24h trazendo novos danos ao comércio local, residências e infelizmente novas vítimas fatais.

Assim, escrevi o relato a seguir, como produto de tudo isso que passamos e sob o contexto que busquei trazer, na tarde que se seguiu a esta segunda forte chuva, pois muitas emoções afloraram em nossa equipe e em mim mesma:

“Ontem eu e minha equipe de trabalho fomos visitar a Praça da Águia aqui em Petrópolis. Foi o local escolhido pela prefeitura para a homenagem às vítimas do desastre do dia 15 de fevereiro. Havia muitas cruzes quebradas e espalhadas pelo vento (elas são levinhas, feitas com isopor). Eu fiquei emocionada, fiz um minuto de silêncio e uma prece. Depois disso, senti no coração uma vontade de arrumar cada uma delas e, enquanto fazia isso, eu ia me conectando com a memória daquelas pessoas que morreram de uma forma muito cruel e indigna. Lamentei a morte das 42 crianças e das demais pessoas que não conseguiram se salvar. “A lama levou todo mundo” – como disse uma criança de seis anos, durante atendimento psicológico com uma profissional local que perdeu seus pais e irmãos. Hoje voltou a chover forte e, para a minha surpresa, a lama levou a minha arrumação e a minha forma de homenagear aquelas vítimas. Senti um choque e uma tristeza profunda assim que soube dessa notícia. Mas, agora (algumas horas depois) consegui refletir melhor e perceber que valeu a pena. Senti um grande alívio por ter dado voz à minha sensibilidade e intuição. Foi um ato de respeito, de consideração, de cuidado e de amor. E valeu a pena, mesmo durando apenas um dia. A vida acontece no aqui e agora, no momento presente. Tudo é efêmero e transitório. Que possamos cultivar o bem, a paz e o amor. ”

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