“Afeganistão é lugar de gente amorosa e que, como todos nós, quer ser feliz”

Danielle Severini (terceira da esquerda para a direita) com equipe de MSF no Afeganistão. ©Arquivo pessoal

Kandahar, 31 de dezembro de 2023.

A advogada brasileira Danielle Severini compartilha a experiência de trabalhar em projeto de MSF em meio à crise humanitária no Afeganistão.

Estou sentada em um banco feito de ripas de madeira, cuja pintura branca está descascada, sob uma videira cujas uvas verdes brilham à luz do sol bem acima da nossa cabeça. O céu é azul e cede espaço a poucas e tímidas pipas que, imagino eu, têm suas linhas manuseadas por crianças. Eu não as vejo, não posso. Por motivos de segurança, não podemos deixar as instalações de Médicos Sem Fronteiras (MSF) onde trabalhamos e moramos no Afeganistão.

Pássaros, borboletas e grandes abelhas, as maiores que já vi, visitam o nosso jardim, que ostentam roseiras de cores variadas (amarelas, laranjas, rosas, vermelhas) e pés de manjericão. A grama verde marca o campo de vôlei, que divide espaço com o escape do esgoto e o gerador de energia da casa. Uma porta de ferro branca divide o nosso escritório da nossa casa.

Na equipe de MSF, há profissionais de diversos países, incluindo muitos afegãos contratados localmente. As diferenças culturais são enormes. Mas entre nós, prevalece o respeito. O jardineiro, logo quando me vê, todas as manhãs, coloca sua mão sobre o peito e abre um sorriso me recepcionando quando cruzo o portão. São olhos e sorriso de calmaria.

“Afeganistão é lugar de guerra”, ouço com frequência. Pois bem. O Afeganistão é na verdade o lugar de pessoas, como é qualquer outro país desse mundo todo.

Naquele banco, em um pequeno intervalo dos inúmeros afazeres que recaem sobre mim como gerente de projeto, observo a paz do céu azul, o brilho do sol, a lua crescente, essa que hoje divide seu espaço com o astro-rei. E eu ali, admirando, como coadjuvante da natureza. O silêncio é somente interrompido pelo sino da Mesquita chamando os religiosos à oração.

Neste momento, para mim, Afeganistão é também um lugar de paz. Ainda que durante o caos.

E é por isso, por causa da instabilidade e dos conflitos que se sobrepõem aos momentos de paz no Afeganistão, que os projetos de MSF se fazem tão importantes nos dias atuais na região.

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No hospital de MSF em Kandahar, de 256 profissionais, 33% são mulheres. Um feito que deve ser mantido e comemorado, em uma era na qual a mulher é proibida de trabalhar fora de casa, com raras e controladas exceções, dentre elas as concedidas às nossas médicas, enfermeiras e agentes de saúde. Em regra, o papel da mulher na sociedade afegã se restringe ao lar, ao seu marido e à sua família.

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Entende então a importância de MSF que mencionei acima? Indo um pouco além: MSF mantém um programa de nutrição para bebês e crianças com menos de 5 anos de idade sem custos para a população. Para famílias com muitas crianças, MSF é essencial: do encorajamento e do ensino da amamentação até o fornecimento de fórmulas para crianças com desnutrição.

No sul desse país árido, famílias – mães acompanhadas de seu mahrams (integrante próximo da família) e filhos – aguardam em filas, buscando uma alternativa para combater a desnutrição, muitas vezes causada por tabus e desinformações que impedem a amamentação. A falta de informação adequada, somada à intensa pobreza da população, geram uma necessidade urgente de reestruturação, conscientização e trabalho vigoroso no local.

Mais uma vez, sinto que MSF não é só um hospital, mas uma escola para a vida. Uma janela de oportunidade de compartilhamento, de ensinamento, de atenção, compaixão e amor.

Na equipe que gerencio, nove homens e sete mulheres intercalam sorrisos sinceros e discretos com o trabalho duro em prol de uma causa que visa levar amor e carinho em forma de saúde e alimentos para o próximo – sem julgamento e sem fronteira.

Nem só imersa em conflitos vive aquela parte do Oriente Médio; ali há gente boa, honesta, amorosa e que, como todos nós, quer ser feliz, ter uma chance de viver mais, melhor e com saúde.

E nós, MSF, estamos mais uma vez ali para dizer: “Nos importamos”. E você?

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