“Apesar das dificuldades diárias, estamos juntos”

No momento em que escrevo, fazem três meses que o meu projeto na República Centro-Africana começou, e esse foi o tempo que escolhi vivenciar até escrever este diário de bordo. Estou aqui do lado do rio AuBangui, vendo ele se mover junto com o seu povo, numa fluidez calma que a população há dois anos só pôde conhecer, talvez, ao contemplá-lo. Viver em guerra não é fácil, contemplar pode ser “o que nos resta”. 

Vim para Bangui, capital do país, para trabalhar em um projeto de HIV e tuberculose (TB), o que tem sido desafiador. Desde 2019, esse projeto, que antes havia sido interrompido, foi retomado, e cá estou eu trabalhando como coordenadora de farmácia. 

Trabalho diariamente no Hospital Comunitário de Bangui, que também é um hospital universitário que ajuda na formação de médicos e enfermeiros locais. MSF fica responsável pelos serviços de triagem, clínica médica e a Unidade de Terapia Intensiva (UTI); cuidamos dos pacientes que já estão em estágio 3 e 4 de HIV, ou seja, os que estão em estágios mais avançados da doença, já estando com a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids) e que adquirem com mais facilidade Infecções Oportunistas (IO). 

Logo quando cheguei, o projeto iniciou um processo de descentralização, ou seja, começou a chegar na comunidade através de centros de saúde, levando assistência médica e acesso aos medicamentos para infecções oportunistas aos pacientes com HIV nos primeiros estágios, assim evitando que evoluam para estágios que precisem de hospitalização.

Como farmacêutica, eu sou responsável por toda a gestão do estoque de medicamentos e materiais médicos do projeto, tenho que coordenar e supervisionar todas as atividades relacionadas à farmácia, de acordo com os padrões e protocolos de MSF, também gerencio a equipe envolvida, para garantir uma adequada gestão de medicamentos e materiais médico hospitalares, promovendo o abastecimento da farmácia do hospital e dos centros de saúde que MSF  apoia.

Quanto à minha equipe de profissionais nacionais, precisei de tempo para ganhar a confiança deles, e, no início, tive que ter bastante paciência e humildade porque precisava aprender com eles como as coisas funcionavam aqui, para só então depois começar a dar o apoio de que eles precisavam.

A vida em Bangui agora tem estado calma se compararmos há alguns anos, mas, nós profissionais internacionais móveis temos algumas regras de segurança a seguir. E apesar de todas as dificuldades e desafios que enfrento no dia a dia do terreno, atuar nesse projeto tem me proporcionado aprender muita coisa, além de ter despertado em mim uma resiliência que nem eu sabia que tinha. Tenho feito bons amigos de todos os cantos do mundo, que, no final do dia, saber que estamos juntos torna tudo isso mais possível. Inclusive temos a frase: “Estamos juntos”, escrita na língua de cada um que trabalha no projeto em um quadro branco no hospital, ou seja, para lembrarmos que apesar das dificuldades diárias, estamos juntos, on est ensamble (francês), I yeke yoko (sango – língua oficial daqui junto com o francês). 

Por fim, quando volto do hospital todo dia ao fim da tarde, aproveito esse momento para ver e admirar o povo centro-africano existindo à sua maneira, passo ao lado do Marché Sango, que é um mercado local, e vejo as cores e a força desse povo, que apesar do passado distante e recente duro, resiste. E é nesse momento também que vejo o sol se pondo, de um rosa vivo e tenro, assim, mesmo depois de um dia cansativo contemplar “é o que me resta”, e momentos como esse reafirmam essa escolha de fazer trabalho humanitário em lugares como esse. 

Beatriz Linhares é farmacêutica e atuou entre maio de 2021 e janeiro de 2022 como coordenadora de farmácia no projeto de HIV/TB de MSF em Bangui, na República Centro-Africana. 

O país tem a maior prevalência de HIV na África Central e uma das menores taxas de cobertura antirretroviral do mundo. MSF trabalha para disponibilizar tratamento para HIV/Aids em território nacional, onde é uma das principais causas de morte entre adultos. Também oferecemos atendimento, tratamento e treinamento no hospital universitário de Bangui e apoiamos as instalações sanitárias parceiras. Nossas equipes também trabalham com o Ministério da Saúde para criar grupos comunitários de pacientes para ajudar as pessoas a lidar com os desafios de viver com o HIV e aderir ao tratamento.

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