“Aprendi que não é necessário ser médico, enfermeiro ou farmacêutico para ajudar a salvar vidas”

Desde que encerrei, no final de 2022, uma extensa carreira financeira e corporativa de mais de 40 anos em grandes empresas, quis aproveitar minha experiência e energia apoiando Médicos Sem Fronteiras (MSF) com um olhar comprometido com os direitos humanos. Depois de um minucioso processo seletivo e dos devidos treinamentos, fui selecionado para participar do projeto de combate à desnutrição e à malária no sudeste de Angola, na cidade de Cuvango.

Testemunhei as condições desafiadoras enfrentadas pelas pessoas no interior de Angola. A falta de recursos médicos básicos, a escassez de água potável e as enormes distâncias e dificuldades para se chegar a um posto médico são problemas graves. Fiquei impressionado com a paixão dos profissionais de saúde ao trabalho e a dedicação em fornecer cuidados essenciais, apesar das adversidades.

Rapidamente, aprendi que não é necessário ser médico, enfermeiro ou farmacêutico para ajudar a salvar vidas. E que o trabalho que eu desenvolvia na base do projeto, como gerente de RH e Finanças, que eu considerava tecnicamente simples, era muito importante para apoiar todos.

Confesso que o que eu mais gostava no projeto eram as “escapadas” para ajudar de alguma maneira as equipes de MSF nas comunidades onde atuamos. Sempre que meu trabalho permitia, me escalava para ajudar a levar suprimentos ou medicamentos aos vilarejos próximos e aproveitava para conhecer os moradores e ouvir suas histórias – que não eram poucas e, às vezes, eram bem fantásticas, como a dos jacarés enviados para devorar homens de mau caráter nas margens do rio que dava nome à cidade, o rio Cubango (ou Okavango).

Também gostava muito das conversas depois do jantar com todos da equipe e de ouvir as incríveis histórias que cada um já havia vivido. Era uma explosão de sotaques e culturas diferentes, experiências incríveis de escutar e sonhar. Lembro de uma especial, do profissional que estava lá recuperando uma ponte para abreviar em seis horas a viagem entre um vilarejo até o Centro de Saúde de Galangue.

Como as condições de segurança permitiam, eu aproveitava minha disposição para uma corrida diária até a ponte de ferro, todas as manhãs bem cedo. Claro que um homem grisalho, de quase dois metros de altura e 115 kg correndo pela estrada às seis da manhã chamava a atenção de todos os moradores no caminho. Já cedinho, eles extraíam água do poço, trabalhavam em suas pequenas hortas em frente às suas casas de sapé ou iniciavam a montagem de suas barraquinhas improvisadas à beira da estrada para venda de cogumelos, frutas e gasolina para as kaleluias (pequenos triciclos utilizados para transporte local de produtos e passageiros).

Foi essa curiosidade dos moradores locais nesses oito quilômetros de corrida diária que me propiciou conhecer o professor de português Dionísio e os meninos Manuel e Carlos. Estes últimos se aventuraram, depois de deixar a vergonha de lado, a me acompanhar durante alguns quilômetros, fazendo perguntas. Aos poucos, foram se tornando meus colegas de corrida.

O professor Dionísio, da única escola primária local, logo percebeu que a informação aos seus alunos era a chave para a prevenção da malária na comunidade, via utilização de mosquiteiros e a rápida intervenção médica em caso de sintomas (infelizmente, essa doença, se não tratada, pode evoluir rapidamente para uma forma grave e, em alguns casos, pode levar à morte em 24 horas). Durante a subida em direção à igreja, ele me solicitou uma palestra para suas turmas de alunos, a fim de difundir essa informação para as famílias. Passei essa demanda ao agente comunitário de saúde, e assim foi feita a palestra na escola do professor Dionísio.

Já as conversas com os meninos Manuel e Carlos eram mais leves. Falávamos (quando o fôlego permitia) de futebol (também uma paixão por lá) e das profissões do futuro deles. Manuel queria ser advogado, e Carlos, mesmo sem gostar de matemática, queria ser engenheiro. Enquanto isso não acontecia, queriam, como eu, trabalhar em MSF para ajudar a salvar vidas. Isso me emocionou.

Depois de 40 dias, chegou o momento de encerrar minha participação nesse projeto em Cuvango. Vivi uma experiência transformadora. Ajudar a equipe de Médicos Sem Fronteiras a fornecer cuidados de saúde essenciais e trabalhar lado a lado com pessoas incrivelmente dedicadas foi uma oportunidade única. Essa experiência me mostrou a importância do trabalho humanitário e o impacto positivo que pode ter nas comunidades mais vulneráveis. Levei comigo um profundo senso de gratidão e compromisso para continuar apoiando essas causas de alguma forma no futuro.

 

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