Buscando beleza no cotidiano de Onitsha, Nigéria

A administradora Fátima Cardoso fala sobre sua recente experiência com a comunidade Okpoko, na Nigéria

Buscando beleza no cotidiano de Onitsha, Nigéria

Me chamo Fátima Cardoso e estive na Nigéria de 15 de agosto de 2017 até o mês passado.

Na Nigéria temos a coordenação, que fica na capital, Abuja, e dois projetos: um mais ao norte, numa cidade chamada Maiduguri e outro mais ao sul do pais, que é onde estou, numa cidade chamada Onitsha, também conhecida como a mais poluída do mundo em 2016.

Assim que cheguei fui impactada pelo clima, que é bem diferente. Umidade misturada com poluição e poeira, muita poeira.
O projeto, que no início era de emergência contra a malária, hoje passou a ser um projeto com orçamento próprio e com o objetivo de continuar combatendo a malária e construir um centro de trauma para a população. Não há aqui nenhum serviço de qualidade para a população, todo serviço médico é cobrado. O ponto focal do projeto é uma comunidade chamada Okpoko.

Chegar do Brasil na Nigéria é uma longa jornada, cansativa, mas totalmente previsível. Chegar na capital do país não é muito diferente de chegar em algumas cidades do Brasil. Porém, vir para Onitsha em uma aeronave pequena, compartilhada com CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), é sim uma aventura. Balançamos bastante no ar e, dependendo do período do ano há o Harmatthan, fenômeno que ocorre anualmente nos países subsaarianos e que traz a poeira fina do Saara, causando o que poderia ser o fog londrino. Há manhãs em que não conseguimos ver o telhado da casa vizinha. Voos cancelados ou aeronaves que não conseguem pousar nos aeroportos próximos são comuns. Aqui em Onitsha não há aeroportos. Os mais próximos são nas cidades vizinhas. Só há um voo diário, que iniciou a operação em novembro passado, e o que tínhamos antes, o voo compartilhado com a Cruz Vermelha que faz essa rota uma vez por mês. Viagens de carro são desaconselhadas por motivo de segurança. Há uma forte atuação do Boko Haram no país e a incidência de sequestros de estrangeiros, roubos e assassinatos é grande.

Não nos consideramos um alvo por sermos conhecidos pelo bom serviço gratuito que temos oferecido à população, porém, os padrões de procedimentos para segurança de todos são bem rigorosos.

Pela primeira vez me vi em um projeto confinada em uma casa/escritório. Vivendo e trabalhando no mesmo lugar. Isso torna o trabalho quase que uma distração. Não há o que fazer fora dos muros da nossa base em termos de diversão. E quase nunca temos autorização para sair. A segurança está sempre em primeiro lugar, claro.

O trabalho junto à comunidade é bem intenso. Não há palavras para descrever a situação dos barracos, do piso, das crianças nuas, tão sujas quanto os porcos que trafegam junto a elas no meio da multidão de pessoas, todos com os pés e pernas sujos de uma lama escura, mistura de detritos humanos, insetos, lixo, alimentos estragados, detritos animais, outros animais mortos e em decomposição… Como um ser humano pode viver em tal contexto?

Atuei como gerente financeira e de RH do projeto e por alguns períodos assumi também o posto de gerente de logística. Meu trabalho consiste no monitoramento do orçamento, pagamento de contas e salários, acompanhamento das carreira, recrutamento e seleção de pessoal (nacional). Muitas vezes somos surpreendidos e temos que tomar decisões acerca de alguma atividade que julgávamos que poderia ser feita localmente, mas descobrimos que precisamos de apoio nacional ou internacional e o ajuste orçamentário precisa ser feito.

Convivo com mais seis profissionais internacionais. No fim do meu período lá, éramos eu e um alemão, o gerente de logística, os mais antigos no projeto e os próximos a ir embora. Ou seja, em seis meses a rotatividade é grande e a equipe nacional se ressente disso. Eles falam que quando começam a gostar e confiar, conhecer bem o profissional, ele é substituído. Entendo este sentimento. O país tem uma taxa de desemprego muito elevada e eles se sentem inseguros quanto à permanência deles no emprego. Tentamos tranquilizá-los quanto a isso, porém, nem sempre é fácil.

Consigo ver beleza nesta situação: entre nós a seriedade com que buscamos soluções inusitadas para resolver entraves e seguir com a nossa atuação junto à comunidade de Okpoko. Muitas vezes o entrave vem de dentro da própria comunidade. Então, começamos a longa jornada de negociações. Como MSF, não oferecemos nada além do benefício médico para a comunidade e convencer a todos de que isso já é um grande ganho é um esforço tremendo.

Consigo ver beleza nas mães de Okpoko que trazem seus filhos pequenos amarrados às costas para poder trabalhar o dia inteiro com as mãos livres. Os maiores circulam ao seu redor entre pessoas, animais, motos, lama, sujeira… Me surpreende que não se percam. É uma área com uma densidade demográfica muito alta. Não existe energia elétrica para todos. Trabalhamos enquanto há luz do dia e por volta das 17 horas começamos a retornar. E lá ficam os residentes com suas lamparinas quando têm querosene, com fogueiras quando tem madeira, com os mosquitos, os porcos e com a umidade que vem do piso molhado. Um piso que permanece molhado mesmo em dias de sol. Talvez pelo suor, pelo choro, por tudo que une esse povo nessa comunidade.

Consigo ver beleza em mim mesma após essa experiência. Vejo o mundo de uma forma diferente da que via antes de vir para esse projeto com MSF. Entendo que não somos todos iguais. Que há diferenças, sim. Mas não são as diferenças que MSF descarta como gênero, raça, etnia, etc.. Há diferenças entre mim e as pessoas de Okpoko. Ao tentar tornar o mundo deles um pouco melhor, reabilitando ou instalando postos de saúde, entregando meios para que eles tenham água boa para beber, entregando latrinas ou reconstruindo outras, me sinto renovada. Cada entrega é um ganho para mim. Mesmo que não tenha sido eu a colocar o tijolo ou a torneira para ter água. Cada novo ponto melhorado é uma melhora em mim mesma, em minha vida.

Cada fatura paga me faz pensar que a humanidade é essencialmente boa. Doa recursos e nós os usamos da melhor forma para atender aos que precisam.
 

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