Despedindo-se de Niangara

Niangara, 14 de outubro de 2013

Hoje é, oficialmente, meu último dia de trabalho em Niangara. Meus sete meses e meio de missão voaram.

As últimas semanas foram as mais estresantes, mas valeram a pena. Desde que voltei das férias, no fim de agosto, tinha um cronograma rígido a cumprir até o dia 30/09, dia da transferência oficial do hospital ao Ministério da Saúde congolês. Nosso check-list incluía: fazer o inventário de todos os equipamentos que deixaríamos em todos os departamentos do hospital – desde termômetros, lençóis nos leitos, aparelhos de pressão até os equipamentos mais caros, como concentradores de oxigênio, equipamentos de laboratorio e gerador. Uma lista quase infinita! -;  fazer o inventário da nossa farmácia e planejar a doação de três meses de medicamentos, seis meses de Plumpy Nut – o alimento nutritivo que usamos para tratar a desnutrição -, medicamentos para tuberculose; e dois anos de estoque de medicamentos para o tratamento de Aids. Além disso, tínhamos uma grande quantidade de equipamentos cirúrgicos que Niangara nunca utilizou, porque não fazemos todos os tipos de cirurgia aquí, e alguns remédios estavam com um sobre-estoque de mais de dois anos; ou seja, iriam vencer antes que os pacientes pudessem consumi-los. Tivemos, portanto, que identificar e contar todos esses itens e depois enviar (de avião) para outros projetos de MSF na República Democrática do Congo (RDC), que estavam precisando.

Também fizemos um intensivão de treinamentos, preparados pelo proprio pessoal do hospital (médicos e enfermeiros) com a minha ajuda e do enfermeiro ruandês e a cada manhã depois da reunião de apresentação dos novos pacientes internados em cada serviço, eles apresentavam um tema e depois discutíamos em grupos.
Foram dias de trabalho intensos e todas as noites, fazíamos uma pequena reunião para por em dia o que tinhamos feito e planejar as prioridades do dia seguinte.

Enfim, a última semana de setembro chegou, e como uma família que prepara um casamento, cada um tinha preparativos finais a fazer, inclusive em relação ao que vestir: todas as mulheres de MSF mandaram fazer um vestido com o mesmo tecido para a festa final, desenhado por nossa querida Clarice, já completamente recuperada de sua picada de cobra.

Na quinta-feira (26/09), chegaram os chefes de Kinshasa: o chefe de todos os projetos de MSF no Congo, o chefe médico-geral e a responsável pelos recursos humanos da RDC. Foi como se a família dos noivos tivesse chegado! Todos estávamos ansiosos para saber a opinião deles sobre o trabalho que fizemos nos últimos meses.

Na visita extraoficial que fizemos com o coordenador médico, ele ficou contente de ver o progresso feito em termos de aprimoramento do pessoal e de melhorias gerais e de higiene em todos os prédios do hospital. Na sexta-feira (27/09), eu, o coordenador do projeto de Niangara, o médico-diretor do hospital e o representante de sociedade passamos por todos os departamentos para conferir todo o material que deixamos e assinar os certificados de doação (foi um dia bem longo).

No sabado de manhã (28/09), ocorreu a solenidade oficial de transferência do hospital ao Ministério da Saúde e estavam presentes os chefes de MSF, o diretor do hospital, os médicos chefes de zona e de distrito (o equivalente aos ministros da saúde municipal e estadual), o administrador do território (equivalente ao prefeito) e os representantes da comissão de gestão (a sociedade). Fizemos uma visita rápida pelo hospital, mostrando tudo o que deixamos e depois cada um assinou os certificados de doação e a transferência estava oficialmente feita.

 As 16h, começou a “soirée dançante”, a festa de fim de projeto. Todo o pessoal  de MSF e do Ministério da Saúde estavam presente. Ao todo, eram mais de 300 pessoas. Como os congoleses adoram um protocolo, todo mundo fez o seu discurso (MSF, diretor do hospital, médicos chefes, administrador do território, representante da sociedade) e, em meio a todos os discursos oficiais, os enfermeiros do hospital pediram licença para ler o discurso que eles haviam preparado, intitulado: “Eles partiram”. No seu discurso, eles lembravam todas as doenças que MSF tornou possível tratar porque trouxemos os medicamentos para Niangara, lembraram de alguns pacientes que foram salvos graças a MSF (alguns familiares do pessoal do hospital) e terminaram dizendo que compreendem as necessidades de outros lugares, mas que MSF fará falta à população de Niangara. Foi emocionante!

A festa foi muito bem organizada, novamente um bom trabalho em equipe entre MSF e Ministério de Saúde. Foi bom partilhar esses momentos com toda a equipe com quem trabalhei intensamente por mais de sete meses.

Dia 30/09 foi o meu último dia de trabalho no hospital. Não foi fácil me despedir na reunião matinal. Todos estávamos tristes e claro que tudo o que MSF fez nesses quatro anos em Niangara foi relembrado: todas as mulheres vítimas de violência sexual que foram acolhidas no hospital e receberam tratamento psicológico gratuito; todos os pacientes que tinham hérnias que os impossibilitavam de trabalhar no campo e foram operados, voltando a ser ativos na sociedade; todas as crianças que foram vacinadas com todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde; todos os partos de alto risco que fizemos; e os bebês que salvamos – um dos que mais me marcou foi um bebê prematuro de 800 gramas, que ficou conosco por dois meses, foi para a casa com quase 2 kg e a mãe o levou ao hospital há cerca de um mês, para nos mostrar como seu bebê estava lindo. Sem falar em todos as pessoas vivendo com HIV que receberam tratamento gratuito depois do início do apoio de MSF – 100 % dos bebês filhos de mães HIV positivo que fizeram o pré-natal no hospital e tomaram o remédio para evitar a transmissão foram testados e são negativos! Deixamos mais de 500 pacientes sob tratamento e por isso a doação de antirretrovirais foi equivalente a dois anos, para garantir a continuidade desse tratamento tão importante e necessário gratuitamente para todas essas pessoas.

As minhas duas últimas semanas foram 100 % administrativas: fazer as avaliações de fim de contrato da equipe de profissionais internacionais e nacionais – enfermeiro, farmacêutica, psicóloga, promotor de saúde, cirurgião – e escrever o relatório final do projeto, que terminei esta manhã.

Apesar da grande carga de trabalho, meus sete meses em Niangara foram especiais. Foi interessante fazer parte desse projeto de poder ajudar na transferência de competências e autonomização dos médicos e enfermeiros do Ministério da Saúde local. Todos estavam engajados com o mesmo objetivo e, no final, podemos dizer que deixamos os meios para que eles possam andar com as suas próprias pernas. O hospital é completo, com o melhor padrão da região (em 30/09, o Hospital Geral de Niangara era o quinto melhor da RDC, só perdendo para os hospitais universitários). Deixamos dois geradores para fornecer energia, doamos o diesel para fazer o gerador funcionar pelo período de um ano, instalamos vários painéis solares, de modo que a maternidade, o centro cirúrgico, o laboratório e o pronto-socorro serão independentes do gerador e poderão funcionar com energia solar. Doamos uma caminhonete para a zona de saúde, computadores, impressora, retroprojetor, motos, bicicletas (para garantir o aprovisionamento de vacinas em toda a área de saúde que agora tem freezers que funcionam com energía solar para armanezar as vacinas mesmo no meio da floresta), etc. Fizemos vários terinamentos teóricos e práticos para todo o pessoal  do Ministério da Saúde, de todos os departamentos, e eles são independentes e pro-ativos. Agora, resta a eles aproveitar tudo o que deixamos e garantir a continuação da boa qualidade de tratamento oferecida à população.

Enfim, amanhã deixo Niangara com uma grande saudades de todos os amigos que fiz aqui e de todos os bons momentos vividos no centro da África, como também é conhecida esta região tão linda da República Democrática do Congo.

Até o próximo projeto,

Rachel

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