A dor da despedida e a alegria do reencontro

Raquel Bandeira fala sobre Bruno, um paciente que guarda na memória do período em que trabalhou em Moçambique

A dor da despedida e a alegria do reencontro

Só dois meses depois que voltei ao Brasil consegui organizar as ideias ao ponto de passá-las para frente como uma história. Os últimos tempos não foram fáceis para ninguém. Quanto a mim, fico na dúvida se seria o primeiro ou o último mês de missão o mais difícil. O primeiro mês foi difícil pelo novo. Pelo medo de não ser capaz, de não dar conta ou de não aguentar. O último mês foi difícil pela minha incapacidade de me despedir.

É muito difícil dizer tchau. Em sete meses tive que me despedir de dois lugares que foram radicais na minha formação humana e médica. O primeiro, em fevereiro, o Instituto de Infectologia Emilio Ribas em São Paulo onde passeis três anos durante a minha especialização em infectologia. O segundo Maputo, Moçambique, onde passeis seis meses como médica na minha primeira missão com MSF.

Como consequência da falha de me despedir, hoje encaro, alheia, a cidade em que moro. As lembranças do passado surgem como um presente de natal embalado no papel brilhante da saudade. Do Emilio Ribas ainda vejo meus amigos de residência e, quando nos encontramos, rimos e nos emocionamos com as histórias que vivemos ali. Doi um pouco menos a saudade.

De Moçambique, de todos que por mim passaram, entre amigos e pacientes que também se tornaram amigos, a história mais dura foi a do Bruno*.

Bruno, era um menino de 18 anos pequeno e muito magro para a idade, olhos baixos e andar arrastado. Contraiu HIV aos 11 anos, provavelmente, após receber transfusão com sangue contaminado como consequência de uma malária grave. Iniciou tratamento para o HIV alguns anos depois e comparecia as consultas sempre acompanhado de sua mãe.

Sua mãe é uma mulher de doçura incrível, mas que com muita força criou os filhos sozinha. Uma série de fatores como pobreza, pouco entendimento sobre o HIV/AIDS e adolescência contribuíram para Bruno fazer uso irregular da medicação do HIV. E foi assim que eu o vi a primeira vez: resistentes aos remédios de primeira linha para o tratamento de AIDS, com o CD4 (células de defesa) de zero (nunca vi esse valor tão baixo antes) e com duas doenças oportunistas do HIV/AIDS (tuberculose disseminada e meningite criptocócica).

De todas as doenças oportunistas do HIV, considero a meningite criptocócica a mais cruel. Primeiro pelas consequências da infecção: cegueira, surdez, coma e por fim a morte. No Brasil, a mortalidade da doença (mesmo que receba tratamento adequado) é em torno de 40-50% e na África a mortalidade dessa doença fica em torno de 80%. Para o diagnóstico e para um tratamento adequado é necessário fazer punção lombar quase que diária durante a fase mais intensiva do tratamento.

Bruno não teve muita sorte e evoluiu com a doença muito grave, sendo necessário, às vezes, até três punções lombares no mesmo dia. No total, calculo que devo ter feito só nele umas 40 punções. Não, não deve ser fácil de suportar. O recurso melhor seria uma neurocirurgia, mas eu não possuía esse tipo de recurso. Durante esses 6 meses, Bruno me amou e me odiou. Chegou a fugir duas vezes do tratamento. Mas não tinha como fugir por muito tempo, ele ficava doente, a cabeça começava a doer, ele não conseguia enxergar direito e invariavelmente voltava ao hospital – no dia que eu trabalhava. Por diversas vezes pensava que seria a última vez que eu cuidava dele. A doença era muito grave, a hipertensão intracraniana era elevadíssima. Até aquele momento, todos os pacientes que tive com semelhante gravidade morreram. Lembro do Jonas de 19 anos, no leito 17 da UTI do Emílio, que não resistiu e morreu, mesmo eu e Dri lutando bravamente para que não acontecesse. E tantos outros que também passaram veloz, por meio da noite e partiram.

Inúmeras vezes, engolia em seco e, mesmo não querendo, me despedia em pensamento de Bruno e de sua doce mãe. Mas no outro dia, como um pequeno milagre cotidiano, ele voltava. Foram inúmeras dolorosas despedidas para alguém que não está acostumada a perder. Mas ele voltava, e voltou até meu último dia de trabalho. Novamente com dor de cabeça, hipertensão intracraniana grave. Fiz a última punção. Tiramos fotos juntos e fui embora. Senti uma solidão horrível. Parecia que abandonava em meio ao caos e a guerra uma pessoa da família e a última coisa em que pensei antes que o avião decolasse foi nele.

No avião, enquanto sobrevoava a cidade de Maputo, realizava tudo que aprendi e vivi até ali. Parti com uma máquina repleta de lindas fotografias em preto e branco, um neném que recebeu meu nome em homenagem e inúmeras vivências para contar. E teve Bruno, que entre nossas despedidas silenciosas e reencontros milagrosos me fez viver uma frase do Gabriel García Márquez que já amava: “É a vida, mais do que a morte, que não tem limites”.

*O nome do paciente foi mudado.
 

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