E o que faz a saúde mental?

O psicólogo Raul Manarte fala sobre os ensinamentos que aprendeu em Moçambique, na resposta ao ciclone Idai

E o que faz a saúde mental?

É uma pergunta comum e não apenas para quem está “fora” do mundo humanitário. Em Moçambique, o cenário é de catástrofe natural envolvendo elevada perda humana e danos materiais. Em termos de saúde mental isso constituiu um evento potencialmente traumático e nós sabemos que uma porcentagem da população vai desenvolver sintomatologia mental significativa. Também sabemos que, nos primeiros três meses após o evento, uma forte intervenção psicossocial na comunidade vai diminuir essa porcentagem: é uma corrida contra o relógio.

Há sempre muitos desafios, mas eu gosto sempre de realçar os desafios mais “internos” – os meus e os da minha organização – e é por isso que gosto de mencionar que mesmo dentro de Médicos sem Fronteiras temos muitas vezes de educar/sensibilizar os colegas para a importância, os moldes e as estratégias da intervenção psicossocial. E tal como realço a necessidade de sensibilização também realço a importância da abertura, flexibilidade e vontade de cooperar de muitos dos nossos colegas: senti que bastou uma conversa acerca da pertinência e estratégias das atividades de saúde mental para que toda a equipa internacional “ficasse do meu lado”. Realço também o trabalho entre as secções: algo sobre o qual muitas vezes não falamos. Em Moçambique, todos os profissionais de saúde mental de MSF já estavam em contacto comigo antes mesmo de eu chegar ao país: e que impacto fabuloso teve no nosso trabalho.

E, apesar de aprender imenso com os nossos colegas internacionais, o grande professor desta missão (como em todas) foram o povo e os profissionais locais.

Então eis o que aprendi:

Aprendi que sete pessoas conseguem chegar a 20.000, cara a cara, em três semanas.
Aprendi que o conseguem fazer porque as comunidades estão interligadas numa rede humana que une milhares de pessoas, basta um chamamento. Essa rede não encontro no Porto, nem no meu prédio – e eu é que ensino?

Aprendi que ser vítima não é carimbo, até pode ser trampolim: uma delas esteve três horas presa em casa com a filha, sem telhado, desesperada a tirar a água aos baldes pelas grades da janela para não morrerem afogadas, até que a ajuda chegou com a manhã. E nas manhãs seguintes e em todas as manhãs desde então chegou a vontade e capacidade de ajudar os outros – e eu é que ensino?

Um deles ficou sem casa, sem documentos, sem telemóvel e a primeira vez que o conheci, numa aldeia remota, dedicava-se a ajudar os outros, sabia exatamente onde estavam os mais necessitados e o que necessitavam. Vi-o levar alguém às costas durante quase um quilómetro até ao nosso carro, até ao hospital – e eu é que ensino?

Uma delas disse-me imediatamente que a própria ajuda humanitária pode ser um problema e que teríamos de energizar a comunidade para se ajudar a si própria, a ajuda que cai do céu nunca basta e nunca chega a todos, o que é teu tem mais valor – e eu é que ensino?

Em absolutamente todas as reuniões comunitárias em que estive, seja na “cidade” ou naquelas aldeias a um hora de helicóptero, os mais velhos falam primeiro, ficam na sombra e ficam com os lugares sentados – e eu é que ensino?

Aprendi o que sempre soube e sempre esqueço: a dança e a música não são para vender discos, dar “espetáculos”, encontrar o “mercado”, o público-alvo, fazer vídeos ou “demarcar dos outros artistas”. São para fazer tremer o chão, sarar as feridas, cantar a vida ou dançar a morte, “cuspir o pó da boca e levantar a cara do chão” e para nunca, mas nunca, ires sozinho – e eu é que ensino?

Um deles ensinou-me que “mulungo” em língua sena significa chuva, mas também significa Deus – e aí aprendi tudo.

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