“Ela estava vivendo a maior perda da sua vida: Khadija, sua filha de cinco meses, havia sido contaminada”

“Ela estava vivendo a maior perda da sua vida: Khadija, sua filha de cinco meses, havia sido contaminada”

Durante minha atuação como psicóloga no Centro de Tratamento de Ebola (CTE) de MSF de Kissy em Serra Leoa, entre muitos casos atendidos e envolventes, Haja foi quem mais me surpreendeu, não só pelo seu sofrimento como também por sua superação e coragem para pedir ajuda. Ela tinha apenas 17 anos e estava vivendo a maior perda da sua vida: Khadija, sua filha de cinco meses, havia sido contaminada pelo Ebola.

Eu havia acabado de chegar ao projeto e estava caminhando pela área de baixo risco em direção à enfermagem para ter meu primeiro contato com a equipe, quando encontrei Haja, sentada do lado de fora da área de alto risco, chorando e aflita. Ela foi receptiva quando me apresentei e pedi para escutar sua história.

Haja estava curada do Ebola, mas permanecia internada para prover cuidados à sua filha. Naquele momento, no entanto, ela não o fazia, porque um sentimento de culpa recaía sobre ela, que tinha contaminado a pequena Khadija enquanto a amamentava. Ela dizia: “Eu não sabia que estava com Ebola, e também não sei como isso foi acontecer”.

A culpa que Haja se referia fazia com que ela se distanciasse de sua bebê e se recusasse a mantê-la em seus braços. Em meio ao nosso primeiro contato, começávamos a primeira sessão de psicoterapia.

Haja entendeu, por fim, a importância de estar próxima de Khadija naquele momento tão particular, e se comprometeu a promover cuidado e atenção, mantendo o contato, tocando a criança e conversando com ela. Porém, minutos depois de nos despedirmos, encontro-a aos gritos e correndo pelo centro de tratamento chamando por Khadija e falando uma mistura de inglês com krio. Algo como: “Não me deixe, não se vá”. Khadija, naquele momento, tinha acabado de falecer.

Quando ela me vê chegando perto da cerca entre as duas áreas de risco, me traz a criança morta em seus braços. Ela precisava do tempo dela para aquela despedida, então, aviso a equipe de enfermagem para que se mantenham próximos dela para o que precisasse, e peço que o tempo de despedida seja respeitado. A boa comunicação entre o serviço psicossocial e a equipe médica, bem como a equipe de promoção de saúde, foram essenciais para que falássemos a mesma língua e dividíssemos as mesmas percepções. As tomadas de decisão eram feitas em equipe, o que proporcionou o acolhimento de Haja por todos os envolvidos, tanto da equipe de profissionais internacionais como da equipe nacional.

Por determinação do chefe da família, Haja não pôde participar do funeral que é realizado pelos promotores de saúde de MSF. Nem mesmo minha recomendação de que aquele momento seria importante para ela elaborar o luto foi considerado. O fato de Haja não ter tido contato com o funeral de Khadija fez com que ela voltasse uma semana depois para o acompanhamento psicoterapêutico, queixando-se de pensamentos intrusivos de sua criança morta, como se houvesse um vazio entre o momento do falecimento e o atual. Ela já não conseguia mais dormir, chorava involuntariamente, tinha pesadelos, se sentia vulnerável e abandonada.  

Meus encontros com ela se tornaram o seu lugar seguro, onde os medos do futuro e a rejeição eram verbalizados; onde não havia preconceitos nem julgamentos; onde era possível falar da sua raiva e de sua culpa; e onde ela se sentia fortalecida emocionalmente para falar do significado de Khadija e dos diversos abandonos e rejeições sofridos em sua vida.

Ela não conseguia manter um diálogo, pois a imagem da criança morta em seus braços invadia seus pensamentos e ela repetia diversas vezes que ela não estava morta, que estava viajando e que voltaria um dia. O foco da terapia foi o enterro simbólico de Khadija e o ressignificado da vida.

Foram cinco sessões semanais para o resgate da autoestima e identidade, o preenchimento do vazio interno e também a superação do estigma sofrido pela comunidade, incluindo parentes próximos que se recusaram a participar do tratamento por ela ser uma sobrevivente de Ebola.

Em seu papel de adolescente, ela alimenta o desejo de uma nova vida, mesmo devastada pelo Ebola, com um novo cenário, no qual ela vai poder incluir os personagens, escrever sua própria história e fazer suas próprias escolhas, de amar e ser amada e de levar consigo a imagem de uma Khadija saudável, como a criança foi um dia.

Em nosso último encontro, quando eu estava pronta para voltar ao meu país, ela me disse com um sorriso no rosto que não se sentia abandonada, que sabia que eu estava ali de passagem e que o que fica é o sentimento de gratidão e superação. Ela disse também que quando voltasse a estudar se tornaria uma profissional da saúde, por entender que tendo ela mesma vivenciado a cura, seria possível desempenhar a função de curadora.
 

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