“Em muitos momentos, a presença empática, a escuta qualificada e o acolhimento eram a mais terapêutica intervenção possível”

Foto: Arquivo pessoal
A psicóloga de MSF Letícia Furlan conta sobre sua atuação com saúde mental na guerra da Ucrânia.

Atuei no projeto de emergência na Ucrânia e fiquei de maio a agosto de 2022 em Kharkiv e arredores, região situada no leste do país, em um contexto de muita vulnerabilidade, sofrimento e instabilidade. Essa área da Ucrânia foi afetada massivamente, com ataques severos desde o começo da guerra.

Neste projeto, trabalhamos com doações para serviços de saúde, rede de voluntariados e para deslocados/as internos e também desenvolvemos clínicas móveis com psicólogos/as e médicos/as em cidades onde não havia nenhum outro ator presente no cuidado à saúde, além de treinamentos pontuais e suporte psicológico para a equipe de saúde local e voluntários/as. Trabalhamos muito próximos e em conjunto com as comunidades e com serviços do sistema de saúde que ainda permaneciam atuantes.

Saúde mental na Ucrânia é algo relativamente novo e ainda há muita resistência em relação a essa forma integral de cuidado. E, historicamente, a Ucrânia é um país com altas taxas de adoecimentos em relação a questões de saúde mental. As atividades de sensibilização e propagação de informações sobre saúde mental tiveram um grande impacto nas comunidades e serviços de saúde e, diante de tanta instabilidade, perdas, desamparo e sofrimento, as pessoas estavam muito receptivas ao nosso suporte. Em muitos momentos, a presença empática, a escuta qualificada e o acolhimento eram a mais terapêutica intervenção possível.

Dentro daquele contexto, os cuidados em saúde mental foram rapidamente entendidos pela população local como prioridade. As pessoas começaram se organizar e traziam amigos, parentes e pessoas que dividiam o local de abrigo para se beneficiarem com os nossos serviços. Foi um movimento muito bonito porque a própria população começou a atuar como promotores/as de saúde, divulgando as informações que recebiam nos nossos espaços e também identificando aqueles que precisavam de atenção e cuidado.

Trabalhar em meio à guerra é complexo e muito desafiador. Era uma atuação que procurava, constantemente, linhas de fuga, de possibilidades, de potência, de respiro, de afeto, para produzir e expandir redes de cuidado. Para além de todas as atividades que sugiram dessa procura, no meu dia a dia, intensamente compartilhado e cocriado com os/as ucranianos/as, as crianças me traziam muito essa força de vida, esses rompantes de leveza, como se estivessem sempre chamando atenção para a possibilidade de abertura a sonhos e esperança, mesmo em meio à guerra.

Muitas pessoas se beneficiaram das atividades desenvolvidas por MSF, o que é maravilhoso, porque sabemos que eventos traumáticos, com muitas situações de perdas, vulnerabilidades, quando ainda associadas com falta de suporte e cuidado à saúde mental, podem desencadear transtornos mentais crônicos e severos.

Atuar na emergência não é só pensar na diminuição do sofrimento presente, mas também trabalhar com o objetivo de prevenir e/ou minimizar danos incapacitantes no futuro. Sem dúvida alguma, esse foi o projeto mais desafiador, mais marcante e sensível que fiz com MSF. Esse é um daqueles contextos em que “só” sua presença empática e respeitosa já faz uma grade diferença na vida das pessoas. São vidas que precisam e ainda vão precisar de muito apoio para se reestabelecerem.

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