“Estamos juntos”

Foto: Arquivo Pessoal

“Voltei ao Brasil após seis meses morando no interior da República Democrática do Congo, uma experiência com muitas privações e durezas, com restrições de liberdade por conta do contexto de violência na cidade. Mas o que faz ser possível aguentar tudo isso é o trabalho: que orgulho ter feito parte do maior projeto contra a violência sexual de MSF!

Nesse contexto de pós-conflito, o estupro, utilizado antes como arma de guerra, passa a ser incorporado na rotina. Histórias muito duras: abusos com muitos agressores, violações de famílias inteiras, vítimas de todas as idades e gêneros. Também havia mulheres grávidas de seus violadores e mulheres rejeitadas pelos maridos e pela comunidade, porque, nessa região, ser violada significa ter sido infiel.

Como coordenadora da equipe de saúde mental, uma das minhas preocupações era a saúde mental dos próprios profissionais, pois, afinal, era uma tarefa árdua passar todos os dias escutando os detalhes de toda essa violência. Além disso, os profissionais sabiam que o contexto era complexo e que esse cenário de violência representava um risco para todos.

Além das estratégias formais, como ter espaço para falar das durezas na supervisão clínica ou até poder se consultar com um psicólogo de fora da organização, as estratégias informais para cuidar da nossa saúde mental eram tão importantes quanto as outras. Em uma cidade em que as opções de lazer são restritas, uma das estratégias para aliviar o estresse era estarmos juntos (aliás, ‘estamos juntos’ é uma frase muito importante na cultura, repetida o tempo todo pelos congoleses).

Assim, aos sábados, acordávamos às 6h da manhã para fazer caminhadas e, uma vez por mês, organizávamos uma festa.  Como os congoleses levam as festas muito a sério, para cada ocasião, mandávamos fazer roupas com a mesma estampa e íamos todos de uniforme. Para cada festa, um tecido diferente. E assim, de uniforme, nos sentimos protegidos em meio ao desamparo… de uniforme, mostramos ao mundo que ‘estamos juntos’”.

Isabel Kraml foi coordenadora de saúde mental de MSF em Kananga, na RDC, entre março e setembro de 2021. Antes, a psicóloga já havia atuado como supervisora de saúde mental em um hospital de traumatologia de Bujumbura, no Burundi, entre julho de 2020 e janeiro de 2021. Atualmente, a profissional trabalha como psicóloga clínica em um projeto de AIDS/HIV em Conakri, na República da Guiné.

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