“Estar” gerente e “ser” enfermeira

Natacha Parraguez fala sobre seu papel como gerente e a vontade de atuar como enfermeira apesar das barreiras linguísticas no Iraque

“Estar” gerente e “ser” enfermeira

Dentro de duas semanas, termino a minha mais longa experiência em um projeto de MSF. Fui chamada para gerenciar os serviços de enfermagem de um projeto de emergência com deslocados internos no Iraque, vindos principalmente da região Hawija. De início, seriam apenas 3 meses. Porém, o projeto e o ambiente tomaram meus sentidos de tal maneira que houve extensão em mais 6 meses de contrato.

Tikrit é a segunda maior cidade do Iraque, quase que a meio caminho entre Bagdá e Mossul. A grande maioria dos pacientes que recebemos vem fugida de cidades sitiadas pelo Estado Islâmico. Fugiam da violência, da brutalidade, com a roupa do corpo, carregando consigo nada mais que um pouco de água ou dinheiro e todos os pesares de seu luto. Incontáveis viúvas, mães que perderam seus jovens filhos ou filhas, poucos idosos frágeis que resistiram a dura travessia de uma cadeia de montanhas de 7 Km, cravejada de minas terrestres. Não bastasse a dureza da travessia, da vida deixada para trás, ainda há a ameaça de deparar-se com uma explosão na escuridão da madrugada nas montanhas.

A vida tenta irromper e voltar à normalidade dentro dos campos. As mulheres já buscam por cuidar de suas famílias, há roupas lavadas e penduradas numa cerca de arame farpado que limita o campo. Há fornos de barro com gravetos secos a queimar para fazer o pão que irá alimentar a família. Há distribuição de itens essenciais de alimentos, abrigo, utensílios para manter o calor durante o frio cruel do inverno do semi-árido montanhoso.

O “estar” gerente demanda alto grau de foco e atenção, uma vez que estar à frente de uma equipe faz aumentar o estado de alerta. Não é somente meu erro como profissional que conta, é cada indivíduo da equipe e suas vicissitudes, é o ambiente que nos afeta a todos, são todos os departamentos que têm um foco em comum: o atendimento ao paciente. A barreira da língua me impede de estar bem próxima aos pacientes, uma vez que consulta de enfermagem demanda fluência na língua local e privacidade. Houve poucos momentos em que pude escapar do “estar” gerente e tive o prazer de ser enfermeira “chão de fábrica”, assistencial. Momentos esses em que a mímica pôde facilitar minha comunicação com meus enfermeiros, momentos em que meu tradutor, de costas para a paciente-puérpera, traduzia minhas recomendações e a paciente deixava-se ser examinada por mim. Havia a necessidade? Talvez para o paciente não, ele poderia aguardar e ser atendido por outro da equipe. Mas eu tinha a necessidade dessa recompensa imediata, dessa troca que existe entre enfermeiro e paciente. Aquela troca que quebra barreira de linguagem e encontra ternura e compreensão num olhar. Sim, toda vida importa. Não escolhe lado, crença, etnia, posição social. É nessa breve troca que me re-energizo, que deixo para trás todas as inconveniências de se estar tão longe de casa, da família.

Ao longo de nove meses, esses momentos foram raros, mas marcaram minha experiência aqui. Carrego comigo o olhar desses pacientes. Um olhar de reconhecimento, de saber haver sido tratado como igual, com respeito e dignidade.

A rotina árdua e os recursos humanos escassos fizeram-me assumir mais de uma responsabilidade, e, orgulhosa que sou, quis ser perfeita em tudo. O cansaço nocauteou forte, especialmente depois de eu ter certeza da minha data de partida. É época de aceitar o fim, colher os frutos, preparar-me para algum tempo de recolhimento na minha caverna emocional. O sol queima forte lá fora…são 43 graus, sol à pino… dentro de mim, as cores do outono tomam meu coração.
 

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