Eu fico com a pureza da resposta das crianças…

Foto: Arquivo pessoal

Vinícius Caramuru, gerente de promoção de saúde de MSF-Brasil que atuou no Sudão do Sul, compartilha sua experiência ao participar da primeira campanha de vacinação do mundo para controlar um surto de hepatite E.

Em 1955, a primeira grande epidemia de Hepatite E de que há referência ocorreu em Nova Delhi, na Índia; 57 anos depois, em 2012, na China, a única vacina existente contra Hepatite E foi licenciada. Desde 2015, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que seja considerado o uso desta mesma vacina para controlar surtos de Hepatite E, principalmente em contextos de campos de deslocados internos. E em março de 2022, MSF realizou a primeira campanha de vacinação da história para controlar um surto de Hepatite E. Isto foi no Sudão do Sul, no campo de deslocados internos de Bentiu.

Assista: Rodas de conversa | Saúde do planeta: uma crise humanitária
Leia também: Vacinação da hepatite E: esperança na luta contra uma doença negligenciada

O campo de Bentiu abriga cerca de 100 mil pessoas. Ele é o maior acampamento para deslocados internos do Sudão do Sul e foi criado para abrigar as pessoas temporariamente durante a guerra civil que se iniciou em 2013. Mas devido à constante instabilidade do norte do país, o campo só foi aumentando, e as pessoas foram chegando e permanecendo nele por não terem condições econômicas de sair dali e por ser um local relativamente seguro.

Quando cheguei em Bentiu, em fevereiro de 2022, observando da janela do avião, fiquei surpreso com a enorme quantidade de água que cercava o campo, represada por grandes extensões de diques de areia. Um pouco mais de volume de água e o campo estaria inundado. Já na cidade de Bentiu, próxima ao campo, vejo centros comerciais e vilas inteiras inundadas, impossibilitando a moradia e o comércio nesses locais agora abandonados. As chuvas de 2021 no Sudão do Sul, provocaram as maiores enchentes no país nas últimas décadas, afetando mais de 800 mil pessoas. E como a maioria das crises no mundo, a crise climática também prejudica primeiro os mais pobres.

Essas enchentes históricas têm relação direta com o que aconteceu logo em seguida a elas, o aumento do número de casos de Hepatite E no campo de Bentiu. Principalmente porque esta doença é transmitida quando uma pessoa entra em contato com as fezes através da água poluída, principalmente, e em menor escala, com comida infectada etc. As condições sanitárias no campo já eram péssimas. As casas não tinham banheiro e nem chuveiro, e as pessoas coletavam água nos poços. Esgoto a céu aberto era muito comum de se ver, e havia cerca de centenas de pessoas para cada latrina. Toda semana morriam pacientes no hospital de MSF por causa da Hepatite E.

Meu papel como gerente de promoção de saúde era mobilizar as pessoas para que elas fossem vacinadas. Então eu treinei um time de cerca de 30 promotores de saúde e fui junto com eles andar por cada beco e rua daquele campo, informando e chamando a atenção das pessoas sobre a importância de se vacinar, fornecendo informações sobre onde, quando e quem poderia se vacinar.

Não foi uma tarefa fácil. Primeiro, você tem que engajar as lideranças comunitárias, e elas são muitas, o campo possui cerca de 64 blocos, com cada bloco possuindo um time de líderes, por exemplo.

Outro ponto é que haviam muitas informações falsas sobre a vacina contra hepatite E espalhadas na comunidade e também entre algumas lideranças comunitárias. Havia rumores de que a vacina contra hepatite E causaria reações, como: “A vacina vai fazer você dormir por 3 dias, não vai poder trabalhar”, ou “essa vacina o impossibilita de ter filhos”, e “estou com medo de perder o meu bebê se tomar essa vacina” eram algumas das informações falsas que circulavam. Sobre esta última informação falsa, a consequência pode ser ainda mais grave, pois mulheres grávidas são um grupo de risco para hepatite E.

O fato de a vacina ser somente recomendada pela OMS para pessoas com mais de 16 anos também gerou muitos rumores entre a comunidade. “Se vocês não vacinarem as crianças, eu não vou tomar”. Isto era particularmente bem difícil, pois muitas crianças eram afetadas pela hepatite E naquele contexto. Mas de fato, esta única vacina existente para combater a hepatite E só é recomendada, com base em dados científicos atuais, para pessoas maiores de 16 anos.

Houve muitos outros rumores que dificultaram o nosso trabalho de mobilização. Começamos os dois primeiros dias de vacinação com números baixos. Quando se fala em campanhas de vacinação de sucesso em contextos parecidos com esse, você tem um número muito alto nos dois primeiros dias.

Em uma mobilização para vacinação, você começa a trabalhar intensamente na divulgação nos dias anteriores ao início da mesma. Resumindo, no terceiro dia de vacinação, as coisas não estavam indo da maneira como eu planejava, eu já estava praticamente há 9 dias seguidos andando o campo inteiro com os promotores de saúde sob um sol de mais de 40 graus do início da manhã até o fim da tarde. E o meu trabalho não surtiu efeito. Visivelmente, os promotores de saúde já estavam começando a dar os primeiros sinais de cansaço. Havia dias que eu aproveitava o deslocamento no carro de MSF para simplesmente deitar no banco de trás e recuperar as energias até a próxima descida do carro.

O cansaço estava batendo, e com ele, o mau humor e a insegurança. Será que não sou bom o suficiente? Será que sou inexperiente demais para essa missão? E nesse momento, eu estava sendo cobrado para intensificar a mobilização. É nessa hora que a pergunta roda e a cabeça agita: “Como intensificar?”

A resposta viria de onde eu menos esperava. Em todos os lugares que eu ia, as crianças sempre estavam se aproximando, sorrindo para mim, jogando a bola de futebol, e eu, quando tinha tempo, brincava com elas. Meu nome era muito difícil de ser pronunciado por elas, mas quando eu dizia que era brasileiro e que tinha o nome de Vinícius, assim como o jogador Vinícius Júnior, elas diziam: “Vinícius Júnior!”, e meu nome era pronunciado perfeitamente.

Aprendi algumas frases em nuer, como cumprimentos e como informar as pessoas sobre a vacinação: onde, quando e quem poderia ser vacinado. E apesar do meu sotaque bizarro, as pessoas me entendiam. À medida que eu andava pelo campo fazendo a supervisão dos promotores de saúde, também mobilizava as pessoas para a vacinação na língua local, através do megafone, e as crianças me seguiam nessa hora.

Elas passaram a repetir as mensagens sobre a vacinação, e inventamos canções com mensagens sobre a vacinação juntos. Isso chamava a atenção das pessoas. Entre uma mensagem sobre vacinação e outra no megafone, eu fazia batidas de funk, e as crianças incrivelmente dançavam como as crianças do Brasil, apesar de não conhecerem o ritmo até então. Quando os times de vacinação formados por profissionais locais passavam por mim nessa hora, vibravam, isso parecia motivar eles também. Em um determinado beco, um momento que jamais esqueço: todos saíram de suas casas para ver o que eu estava falando, cantando e dançando com todas aquelas crianças. De repente, todos que saíram de suas casas começaram a bater palmas. Isso me deu uma energia enorme. Quando voltei ao ponto de vacinação desse mesmo bloco, das palmas, diferente de antes da mobilização, quando estava vazio, agora, havia filas para as pessoas se vacinarem. Foi nesse momento que percebi que tenho o melhor trabalho do mundo.

Quando as crianças me avistaram de longe, gritavam “bake tom” (que quer dizer “seja vacinado”), algo que eu repetia muito. Muitas delas me viam e já faziam sons de batidas de funk com a boca. Aprenderam rápido.

Além do meu “show” nos blocos para atrair pessoas para serem vacinadas, passei a trabalhar com mais leveza, criando canções com os promotores de saúde enquanto mobilizávamos as pessoas. Minha chefe nigeriana, a líder médica do projeto, que era uma das pessoas mais fortes que eu conheci e em quem eu punha muita confiança, mudou radicalmente a estratégia, dividindo todos os pontos de vacinação em equipes de vacinação móveis que passariam de bloco em bloco junto com os promotores de saúde.

Isso aumentou mais ainda nossos números. Mas foi uma “guerra de trincheiras”. Se os promotores de saúde paravam de mobilizar no megafone, as pessoas paravam de ir se vacinar. Por isso, eu rodava aquele campo o dia inteiro, acompanhado de cada promotor de saúde, mobilizando com eles, motivando, trocando as baterias do megafone, fornecendo lanche, água, tudo para a mobilização não parar. O número de pessoas procurando os pontos de vacinação começou a aumentar mais e mais. Depois de 16 dias (7 de pré-mobilização e 9 de mobilização mais vacinação) ininterruptos, andando por todo aquele campo com o meu time, atingimos a marca de mais 90% da população-alvo vacinada. E a campanha para a segunda dose foi melhor ainda.

Para fechar, queria dizer que não escrevi esse texto para mostrar que foi um projeto somente com momentos felizes, houve também muitos momentos de sofrimento. Fiquei três dias doente de cama no acampamento, não podíamos sair de lá à noite por conta da insegurança, ficamos dois meses sem ventilador para dormir num tukul (estilo de moradia local), em uma temperatura de mais de mais de 35 graus à noite. Houve “perrengues”.

Mas as crianças foram marcantes. A reação natural delas à vida me deu uma energia enorme para enfrentar tudo isso. Eu sei que não devemos romantizar a alegria dessas crianças que vivem em meio a tanto sofrimento, mas a resposta delas me deu muita força. No final, apesar de tudo, eu fico com a pureza da resposta das crianças.

Compartilhar