Iraque: uma experiência única e intrigante

A psiquiatra Paula Orsi fala sobre a oferta de cuidados de saúde mental a refugiados sírios e deslocados iraquianos em Erbil

Iraque: uma experiência única e intrigante

Meu nome é Paula, tenho 36 anos e sou psiquiatra. Meu primeiro projeto com Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi em 2010. Estive em países como Quênia, República Democrática do Congo e Egito. Há dois meses, estou no Iraque, em Erbil, capital do Curdistão iraquiano. Minha função é oferecer suporte técnico-psiquiátrico para a equipe de saúde mental. Essa é a primeira vez que venho para o Oriente Médio e, diante de tudo o que vem acontecendo com a imensa quantidade de refugiados e de deslocados e todo o sofrimento, considero um grande privilégio poder estar aqui.

 A chegada na cidade foi bastante surpreendente. Desenvolvida, segura, lindos hotéis, parques, construções em andamento; uma cidade em expansão, agora congelada com a queda do preço do petróleo e o surgimento do Estado Islâmico. O Curdistão tem mantido suas fronteiras e garantido sua segurança e, por esse motivo, recebe grande quantidade de refugiados sírios e deslocados iraquianos. Dezenas de acampamentos lotados rodeiam as principais cidades, entre elas, Erbil.

Tenho vivido uma experiência única e intrigante, muitas vezes difícil de manejar emocionalmente. Somos seis profissionais internacionais, de diferentes países, vivendo em uma casa com relativo conforto, sem luxo, mas em um local seguro, em uma cidade com recursos, restaurantes, shoppings, tudo para se viver uma vida normal, feliz, em paz. A 60 quilômetros daqui, o Estado Islâmico e os exércitos curdo e iraquiano compõem a frente de batalha. Parece incrível viver uma vida tão próxima do normal com uma guerra sangrenta acontecendo a tão poucos quilômetros. E é quando estamos em campo trabalhando que percebemos o quanto essa proximidade é real.

Nosso projeto é composto por duas equipes: uma que atua em clínicas móveis (para tratamento de doenças não transmissíveis, como diabetes e hipertensão, e oferta de cuidados básicos) e outra de saúde mental. Todos os dias, as equipes se dividem em grupos para oferecer tratamento nos diversos campos de refugiados e deslocados, e também nas comunidades locais, rurais ou urbanas, que recebem a grande maioria dessas pessoas que fogem de conflitos. Temos uma equipe incrível, composta por refugiados sírios e deslocados iraquianos que se dedicam profundamente às suas atividades.

Todas as manhãs, a equipe nacional e internacional se reúne no escritório de MSF para organizar a saída. Primeiro, uma rápida, mas importante, reunião para rever as questões de seguranca, com as atualizações da coordenadora do projeto sobre as últimas notícias e os depoimentos dos profissionais locais sobre possíveis atividades militares ao redor e maior garantia de que poderemos trabalhar com segurança. Logo depois, viajamos cerca de uma hora para chegar aos locais de atendimento. Além de toda a equipe logística, que faz tudo acontecer, as clínicas móveis são compostas por médicos, enfermeiros e farmacêuticos para dispensar as medicações, que são levadas todos os dias junto com os demais materiais (luvas, gaze, esparadrapo, esterilizante etc.). Faço parte da equipe de saúde mental, composta por psiquiatras, psicólogos e conselheiros. Geralmente, a equipe de saúde mental se instala nos postos de saúde montados dentro dos acampamentos, que são compartilhados com outras organizações, ou em casas alugadas por MSF nas comunidades locais. Em uma das comunidades rurais, um xeque oferece sua casa para fazermos os atendimentos e sempre nos presenteia com um belo almoço, renovando as energias da equipe com sua hospitalidade.

Durante o trabalho, percebemos a vida real. Os acampamentos são geralmente no meio do caminho entre a frente de batalha e a cidade. Às vezes, podemos ouvir o som de bombas explodindo. E, invariavelmente, podemos ouvir o manifesto das vítimas, suas histórias tristes, por vezes heróicas, às vezes de esperança, de entrega à fatalidade, muitas vezes de impotência. Pessoas que tiveram que deixar tudo para trás, uma vida completa, todos os seus bens, rebanhos, recordações, o perfume preferido. Ou a simples casinha e um emprego que eram seus e faziam a vida ter sentido. Pessoas que perderam entes queridos por meio das mais variadas formas de violência e não puderam se despedir. Se despedem agora, aos poucos.

Entre nossos pacientes, atendemos pessoas com transtornos psiquiátricos prévios, como esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão, autismo etc., e que se desestabilizaram com a privação de cuidados, com o estresse do deslocamento ou das experiências traumáticas sofridas. Atendemos também pessoas que se desestabilizaram principalmente pelo trauma, pelas terríveis situações a que foram expostas e provações que tiveram de enfrentar, e que agora tentam se recuperar. Quase todos ainda possuem familiares nas cidades controladas pelo Estado Islâmico e sofrem com a falta de notícias, com a saudade e o medo.

Novamente, enfatizo o privilégio de poder estar aqui e oferecer o meu tempo, minha escuta, e, quem sabe, algum conforto a essas pessoas. A vida nesses acampamentos parece claustrofóbica. Junto com outras milhares de pessoas, há pouquíssima possibilidade de trabalho e de uma rotina normal, e, para onde quer que se olhe, as cores são as mesmas, tendas e cascalho ou casinhas de cimento e asfalto. A paisagem para se chegar a um desses acampamentos, nessa época do ano, é de um lindo campo dourado. Muitas vezes com girassóis. Ao fundo, as montanhas. E esse contraste entre o belo e o horror se repete o tempo todo: depois de um dia de histórias que nos tocam, comovem e nos movem, em que tentamos confortar e trazer esperança com o que temos de melhor para dar, voltamos para a cidade colorida, pessoas alegres, carros do ano, restaurantes cheios. Cheia de vida. E a vida dentro da gente não se conforma.

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