“Isto é África, Mama Gi”: 6 meses em Serra Leoa

“Isto é África, Mama Gi”: 6 meses em Serra Leoa

Meu nome é Gisele, sou médica pediatra e tive a oportunidade de passar seis meses em Kenema, Serra Leoa. Kenema é a terceira maior cidade do país e conta atualmente com o suporte de Médicos Sem Fronteiras (MSF), que construiu um hospital pediátrico dedicado ao atendimento de crianças de 1 mês de vida a 5 anos de idade. Essa faixa etária foi definida previamente por estudos e pesquisas como sendo a que mais sofre com as taxas de mortalidade no país.

Como o país passou por dois trágicos momentos nos últimos anos – uma guerra civil finalizada em 2002 e uma epidemia de Ebola entre 2013 e 2015 – houve uma grande escassez de mão-de-obra para cuidados de saúde. Por isso, o governo da época, em parceria com o Ministro da Saúde, implementou um sistema de treinamento para o que são chamados de CHO (Community Health Officers – agentes comunitários de saúde, em tradução livre). Essas pessoas, em sua maioria jovens entre 23 e 30 anos de idade, receberam um treinamento intensivo de três anos para estarem aptos a realizar cuidados básicos e, a depender do treinamento, até mais complexos e difundi-los por todo o país.

Em Kenema o principal objetivo de MSF foi construir um modelo de hospital pediátrico para dar suporte ao hospital local e tentar reduzir a demanda gerada para essa instalação, que se mantinha em situação de superlotação. Também foi criado um centro de treinamento específico para o atendimento pediátrico para os CHOs, enfermeiros e demais profissionais nacionais empregados por MSF. O hospital de MSF é divido em alas e conta com um pronto atendimento com sala de emergência e observação, uma enfermaria de pediatria e uma unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica e dois centros de nutrição terapêutica (onde as crianças com desnutrição permanecem para tratamento de doenças e controle e recuperação do estado nutricional). Minha função era gerenciar a UTI pediátrica e enfermaria e oferecer suporte às outras unidades quando necessário, assim como fazer plantões em que apenas um médico era responsável por todo o hospital.

Minha equipe era composta inicialmente por seis CHOs que se tornaram depois sete, tendo em vista o crescimento e aumento da complexidade da unidade. Diariamente eu examinava todos os pacientes e fazia o que chamávamos de uma visita na unidade em todos os leitos, com toda a equipe da UTI. Nesse momento discutíamos os casos, definíamos as altas, admitíamos os novos pacientes, eu oferecia ensinamentos específicos sobre a pediatria e eles me ensinavam diariamente sobre resiliência. Eram dias cheios e completamente ocupados! Sempre com muita emergência e muito o que fazer.

Talvez meu maior desafio nesse contexto tenha sido presenciar por vezes a dificuldade que os familiares tinham em chegar ao hospital, seja pela distância de onde viviam, seja pelas suas condições. Muitas crianças chegavam em estado tão grave que, por mais que tentássemos, não conseguíamos reverter a situação e elas iam a óbito. E, cada vez que perdíamos alguém, a equipe inteira sofria a perda. Porém, não tínhamos tempo para o sofrimento, porque sempre havia um outro paciente precisando de nós.

A população e os profissionais nacionais de Serra Leoa me davam aulas diárias sobre resistência frente às maiores dificuldades impostas pela vida; esse povo nunca tirou o sorriso do rosto! Eles têm uma vontade e uma força de viver inigualáveis! Por incontáveis vezes presenciei situações na UTI com crianças em estado gravíssimo em risco iminente de morte que passaram subitamente a responder ao tratamento, melhoravam e recebiam alta. Eu ficava impressionada nos primeiros dias e, sempre que eles viam a expressão do meu rosto, a resposta era uma só: This is Africa!  – isto é África. Me considero uma pessoa muito comunicativa e pró ativa, e os africanos amam isso! São um povo muito amigável. Talvez por isso tenham me apelidado de Mama Gi – um dos melhores apelidos que já recebi na vida!

Fui acolhida lá tanto pelos funcionários do hospital quanto pelas mulheres que trabalhavam na casa compartilhada onde parte do time de MSF vivia. Algo extremamente marcante pra mim foi ter proporcionado para as três mulheres que trabalhavam na casa um almoço (eu mesma cozinhei) e na ocasião elas me relataram muitas histórias sobre o que viveram no período da guerra civil e durante a epidemia do Ebola. Foram histórias muito fortes (como uma delas ter visto o pai ser assassinado na frente dela) e que me fizeram escorrer lágrimas. A grande lição que me ensinaram foi que, apesar de um passado sombrio, sempre há um motivo em cada dia para sonhar e ser feliz! Eu voltei da África com o coração tão cheio de amor e gratidão que ainda não consigo definir felicidade maior do que essa! Recebi um lindo cartão dos meus CHOs e uma carta emocionante dessas mulheres que relatei acima: foi sem dúvida um dos melhores presentes na minha vida! E para o futuro: quem sabe um novo projeto cheio de experiência incríveis e novos desafios?

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