“KAI GOMA”: expressões de resiliência

Foto: Peter Bräunig/MSF

Pedro Vidal, pediatra de MSF, compartilha sua experiência atuando no hospital de Hangha, em Serra Leoa.

Acredito que desde a minha infância tenho interesse e curiosidade no trabalho humanitário. Mesmo sem saber minha futura profissão, quando criança, me via angustiado ao ver filmes e outras artes que retratavam populações vulneráveis, mas, por um outro lado, sentia admiração pelas diferentes culturas mostradas e me impressionava com a capacidade de resiliência daquelas pessoas.

Conhecer outras realidades diferentes da minha me despertou. E o desejo de tentar de alguma forma contribuir com aquelas populações através do meu trabalho se tornou um sonho durante a faculdade de medicina. Pode-se dizer que fiz boa parte das minhas especializações médicas pensando nisso.

Após um período de ansiedade aguardando meu primeiro projeto, durante a imprevisível pandemia da COVID-19, recebi a proposta de ser o médico responsável pela enfermaria de desnutrição em um hospital pediátrico em Serra Leoa.

Serra Leoa é um país da África Subsaariana, considerada uma das regiões de maior pobreza do mundo e que possui uma das menores expectativas de vida e uma das maiores taxas de mortalidade infantil global.

Estava saindo de uma subespecialização em Pediatria, focada em distúrbios nutricionais, tais como a desnutrição infantil, e considerei essa proposta de Médicos Sem Fronteiras um grande presente em minha vida.

Chegando naquele país tropical, após dias em países distintos e mudanças de voos constantes, vejo da janela do último avião da jornada aquele pano verde de árvores vivas. Foi algo tão emocionante que considero um dos momentos mais especiais em minha vida.

Desde o primeiro dia naquela terra, naquele hospital, com aquelas pessoas, eu realizei instantaneamente como era viver esse sonho. A vida em um projeto se dá em constantes e súbitas reviravoltas. Em apenas 24 horas, podemos experimentar as sensações do pior e do melhor dia de nossas vidas.

Dentro da minha imersão, busquei todos os dias algo que pudesse realmente alterar o destino daquelas pessoas incríveis que estavam à minha volta. Não preciso nem dizer que aprendi muito mais do que ensinei durante a minha missão.

Aprendi um conceito com um serra-leonês que realmente mudou muitas concepções em minha vida. Sua resiliência se dava em palavras: “Kai Goma”, uma frase constantemente presente na minha rotina. Seu significado me envolveu completamente: gratidão.

Via essa atitude inúmeras vezes e me identificava. Me sentia completamente grato por estar ali, podendo fazer algo por esse lindo povo que explicava didaticamente para nós, profissionais internacionais móveis, o seu significado.

Durante o projeto, percebi que coisas simples poderiam alterar o desfecho cruel da desnutrição. Na enfermaria, tínhamos pacientes de um mês até cinco anos de idade. Dentro dessa faixa, os pacientes com menos de seis meses precisavam de um grande investimento no aleitamento materno, única forma de o bebê curar a sua desnutrição.

Realizamos um trabalho comovente em prol do aleitamento materno: dividimos a enfermaria, administramos aulas semanais aos trabalhadores locais sobre aleitamento materno, oferecemos assistência materna com “midwives” (obstetrizes) diariamente e promovemos a nutrição das mães que podiam amamentar.

Essa jornada foi percorrida em grupo, com a ajuda de inúmeros profissionais, locais e internacionais, conseguindo contribuir em muito para a vida desses pequenos bebês. Alcançamos a alta hospitalar de quase todos em aleitamento materno exclusivo e “curados” de sua desnutrição.

Posso dizer que o projeto foi tudo o que sonhei, com todas as dificuldades que me faziam ir ao meu limite, com todas as felicidades que quase não conseguia mais agradecer.

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