“Mas isso seria suficiente?”

Acampamento de deslocados internos próximo ao Hospital de Campanha Indonésio de Rafah, localizado no sul de Gaza. MSF

Ionara Rabelo, psicóloga de MSF, fala sobre sua experiência na Cisjordânia, após escalada brutal da guerra em Gaza.

Acordo numa manhã de sol em Jerusalém. Cheguei para apoiar as equipes da Cisjordânia e de Gaza, como especialista em saúde mental. Quando me sento para escrever este relato, é um sábado; as equipes já estão nas unidades de saúde que estamos apoiando em Gaza. Busco mensagens no telefone, única forma de comunicação que temos com eles e, mesmo assim, apenas em raros momentos no decorrer do dia.

“Mas isso seria suficiente?!” Ecoa em minha mente essa pergunta, vinda do psicólogo em Gaza, ao me repassar o caso que está acompanhando: trata-se de uma menina de 8 anos que está vivendo em Rafah, ao sul de Gaza, próximo à fronteira com o Egito. Ela e sua família haviam fugido da região norte e estavam dormindo em tendas, quando um bombardeio começou. Só ela e o pai sobreviveram. A menina teve um ferimento no braço e tem sido acompanhada em um de nossos serviços, que faz a troca de curativos diariamente.

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 A troca de curativos pode ser dolorosa e um momento de muito sofrimento, especialmente para crianças, que quase não dormem em razão dos incessantes bombardeios, tiros e sirenes. E quase não comem, porque os estoques de comida se esgotaram. Não se banham ou trocam de roupa, pois quase não há água, nem mesmo para beber. Essa menina, assustada, ferida, sem mãe e irmãos, permanece calada a maior parte do tempo, em uma tristeza que se reflete não só em seus olhos, mas em todo o seu corpo. Ela não brinca. Nem mesmo reage quando tentam falar com ela.

Seu pai a leva para fazer os curativos. E, mesmo vivendo um luto imensurável de tudo o que para ele significava vida e esperança, ainda assim, ele se aproxima do psicólogo que acompanha o procedimento para oferecer apoio à criança e diz: “Não sei mais como ajudar minha filha.”

Enquanto tenta se apoiar em sua fé e faz orações, o pai pede apoio para conseguir comida, mas repete: “Não tenho mais a quem pedir ajuda para ela.” O psicólogo me conta as estratégias que utilizou para apoiar pai e filha: explicou sobre o processo de luto, calmamente orientou sobre como ajudar a criança a dormir e a gradualmente retomar um mínimo de rotina, em meio a tendas, entulhos e prédios destruídos, em meio à morte e à ausência de tudo aquilo que seriam direitos básicos para um ser humano, para uma criança.

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Tento validar com o psicólogo que todas as estratégias foram pertinentes, e refletimos juntos sobre como poderíamos fortalecer a relação entre pai e filha, para que possam se apoiar nesse luto que atravessam juntos. Após alguns minutos, vem a pergunta que me fez escrever este relato: “Mas isso seria suficiente?”. Uma sensação de soco no estômago me atravessa; a resposta imediata seria “não”. Isso é só um primeiro passo para tentar recomeçar a ter esperança. E esse passo só pode ser dado com pai e filha juntos, e também com o apoio da comunidade, que os ajuda a se consolar e a sobreviver ao caos.

 

Texto escrito em 09/03/2024.

 

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