“Me pergunto se ele ainda se lembraria dos nossos encontros, sabendo que eu nunca me esquecerei”

Flora com a equipe na República Democrática do Congo. ©Arquivo pessoal

Flora Goldemberg, médica de MSF, narra o afeto compartilhado com paciente de 5 anos de idade na República Democrática do Congo.

Quando conheci Jibu, ele estava lentamente se recuperando das queimaduras e acabara de sair da Unidade de Terapia Intensiva. Seus ferimentos eram extensos, cobriam um terço do seu corpo esguio de menino de 5 anos.

Meus primeiros dias de trabalho no Hospital Geral de Rutshuru, na República Democrática do Congo (RDC), foram marcados não só por esse encontro, mas também pelas salas repletas de pacientes, pelos leitos sempre ocupados, pelo pesar da ala de desnutrição infantil.

Localizado em uma cidade ocupada por um movimento armado e isolada pelos conflitos na República Democrática do Congo, o Hospital Geral de Rutshuru é o principal centro de saúde para cerca de um milhão de pessoas na província de Kivu do Norte, atendendo inúmeros deslocados, feridos de guerra, sobreviventes de violência sexual e queimados. Pessoas que, sobretudo, não têm qualquer envolvimento com os conflitos.

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Quando estive na RDC, Médicos Sem Fronteiras (MSF) era uma das poucas organizações que mantinha atividades de assistência médica e humanitária na região onde eu estava, imersa há décadas em um conflito quase esquecido pelo Ocidente. Meu objetivo lá era específico. Em três meses, eu deveria organizar um serviço de controle de infecção hospitalar e capacitar um médico local para exercer as responsabilidades desse setor depois da minha partida.

Realizávamos diariamente o acompanhamento de pacientes internados com doenças infecciosas, infecções cirúrgicas e outras complicações. Um deles era essa criança, Jibu, hospitalizado poucos dias antes da minha chegada. Jibu, além das queimaduras, tinha febre. Como equipe de Infectologia, eu e o jovem médico fazíamos seu acompanhamento diário, decidindo sobre antibióticos e solicitação de novos exames.

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Jibu nos recebia com um olhar desconfiado. Por que essa mulher branca, estrangeira, vem me ver com tanta frequência? “Muzungu”, ele dizia enquanto apontava para mim com os olhos cheios de lágrimas (“muzungo” significa pessoa branca ou não negra, em swahili, idioma de Jibu).

Os dias passaram, sua febre cedeu, e ele começou a me saudar quando passávamos para ver como estava sua evolução. O grito de “muzungu” tornou-se alegre e, correndo pela enfermaria, ele ganhava peso, brincava e crescia. Um dia, quando passamos, Jibu estava brincando com um balão e o jogou para mim dentro da sua brincadeira. Descobriu que eu brincava também e perdeu o restante de temor. Ao me ver na porta da sala nos dias seguintes, corria para me puxar pela mão, sorrindo e gritando coisas que eu não conseguia entender. As poucas palavras que eu sabia no idioma dele eram febre, tosse e dor.

Nossos corações ficaram apertados no dia em que Jibu teve febre, depois de semanas de calmaria. Disparavam-se questionamentos sobre o que poderia estar acontecendo, sobre o estado das feridas, sobre onde havíamos falhado. Foi quando meu colega observou que os pacientes ao lado também tiveram elevação de temperatura, e decidimos pedir exames de diagnóstico de malária para todos. Para quem tinha a experiência de trabalho nos projetos, a hipótese era evidente: um surto de malária dentro da ala de queimados.

Jibu, apesar do susto passageiro, estava bem, e assim permaneceu após o tratamento de malária dele e de seus companheiros de internação. Ele já não precisava mais do tratamento pela Infectologia mas, até o fim do meu período lá, eu passava para vê-lo. Os enfermeiros riam, se divertindo com a voz dele, estridente de felicidade durante as visitas.

A angústia pelos que ficam é um sentimento crescente no final do nosso trabalho nos projetos. No meu último dia no hospital, Jibu provavelmente não entendeu por que eu estava chorando. Por impulso, perguntei se ele queria algo de presente. Logo pensei como seria inviável conseguir um carrinho, chocolate ou outro presente, diante de todas as restrições de segurança e, afinal, em uma área de guerra. Para minha surpresa, ele, muito feliz com a pergunta, me pediu uma banana. Peguei algumas bananas no refeitório e entreguei, contente com o presente – ele e eu. Poucos dias depois da minha partida, soube que ele recebeu alta do hospital, recuperado.

Me pergunto hoje se ele ainda se lembraria dos nossos encontros, sabendo que eu nunca me esquecerei. A recordação dos seus olhos alegres, do seu entusiasmo e da esperança que ele representava para mim. Talvez contar suas histórias, a história de Jibu e de tantos outros sobreviventes, os tornem menos invisíveis aos olhos do mundo.

 

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