Nepal: aprendizado em mão dupla

A médica Aline Studart conta sobre sua experiência positiva com os nepaleses em projeto de MSF após terremotos de abril e maio de 2015

Em agosto deste ano, recebi a proposta de participar de um novo projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF). Desta vez, o destino seria o Nepal, mais precisamente a cidade de Charikot, que fica a seis horas de carro de Katmandu, capital do país. MSF iniciou um projeto nesse local após dois grandes terremotos (o primeiro em abril, o segundo em maio). Charikot foi a cidade mais afetada pelo segundo terremoto, e a população dessa área estava tendo bastante dificuldade de acesso a serviços de saúde, o que motivou a abertura do projeto.

Como precisavam com urgência de clínico geral no projeto, tive que deixar o Brasil em menos de uma semana. Foi uma correria para organizar tudo que estava pendente antes de viajar, além de encontrar tempo para me despedir da família e amigos.

Chegando lá, fui para o hotel em Katmandu, onde fica a coordenação do projeto. Esse hotel é um dos poucos locais da cidade com estrutura segura em caso de novo terremoto. Tive reuniões para informações sobre o projeto e sobre o trabalho que deveria fazer. No dia seguinte, deveria partir para Charikot, mas, por causa de manifestações na cidade (castas menores protestavam por insatisfação por se sentirem prejudicados com a constituição do país, que estava por ser lançada no mês seguinte), tive que ficar mais dois dias sem sair do hotel na capital. Passei esses dias lendo documentos sobre o projeto, além de artigos sobre as doenças mais prevalentes no Nepal.

Após os conflitos se acalmarem, finalmente pude ir a Charikot. A viagem foi bem agradável e cheia de lindas paisagens. Fomos em comboio e levamos telefone satélite para o caso de algum imprevisto na estrada. Era a estação de chuvas e, nessa época, é bem frequente a ocorrência de deslizamentos de terra nas estradas do Nepal.

Chegando em Charikot, conheci minha nova casa, um acampamento onde ficam todos os profissionais de MSF que vêm de outros países. Além de mim, havia oito pessoas (1 cirurgião filipino, 1 anestesista escocesa, 2 enfermeiros – 1 do Zimbábue e 1 japonês –, 1 logístico da Indonésia, 1 belga responsável pela higiene, 1 administradora italiana e o coordenador do projeto, que é americano).  Todos os dias jantávamos juntos; eu tinha a sensação de dar uma verdadeira volta ao mundo convivendo com pessoas de culturas e hábitos diversos.  Lá, dormia em tenda e tive que aprender a tomar banho de cuia e a usar a latrina. Além disso, tive que me acostumar aos frequentes tremores de terra (miniterremotos) da região. As pessoas me perguntaram se eu não tinha medo de ir para um país que tinha passado há pouco tempo por terremotos e eu sempre respondia que não havia nada que pudesse cair sobre a minha cabeça, já que eu dormia numa tenda. Engano meu! Certa noite, acordei com o barulho de uma árvore que caiu sobre a tenda do colega que dormia ao lado… O mais curioso é que todos acordaram, menos o próprio.  Felizmente, era uma árvore pequena e não causou ferimentos ao colega, nem danos à tenda.

A cidade fica em meio às montanhas do Himalaia e tem paisagens lindas e muitas cachoeiras, o que me levou a dispensar o carro para ir do acampamento ao hospital a pé (percurso de 40 minutos) todos os dias. No caminho, sempre me surpreendia quando passava um ônibus. Além de serem lotados e cheios de pessoas em pé até na porta, a parte de cima também ficava cheia de passageiros. Isso é muito comum no Nepal. Os nepaleses são bem simpáticos e nos cumprimentam com um “Namastê” acompanhado do gesto de juntar as mãos. E eles adoram falar com os gringos. Certa vez, recebi flores de crianças que cruzei em meu caminho.

A comida era bem variada, mas sempre tinha dal bhat (arroz e lentilha) acompanhado de verduras cozidas e outras comidas típicas (chapati, momo, por exemplo). Sempre com um tempero bem forte. Como a vaca é considerada um animal sagrado, só se come carne de galinha e de búfalo.

A religião predominante no Nepal é o hinduísmo, o que faz com que o país seja cheio de festivais. Um dos que vivenciei se chama Teej. É um festival para mulheres. Nesse dia, elas fazem jejum, vestem sáris vermelhos e dançam em frente ao templo. Tudo isso para que seus maridos tenham vida longa. No hospital, as enfermeiras me vestiram com um sári e colocaram um adesivo vermelho em minha testa, que simboliza o terceiro olho. Me senti um pouco nepalesa.

No hospital, eu era responsável pelo setor de emergência e pelos pacientes internados na enfermaria. Pela manhã, sempre fazia uma visita à enfermaria e via todos os pacientes clínicos que chegavam na sala de emergência. À tarde, fazia treinamentos para as enfermeiras e o médico local, além de continuar o suporte aos pacientes das enfermarias e emergência. A cada cinco dias, ficava de sobreaviso à noite para atender os casos mais graves.

Um dia bem marcante foi a chegada do paciente Dev Raj, de dois anos, que foi internado no hospital por pneumonia. O pai dele me contou que tem seis filhas e que Dev Raj é o único filho homem, e também o mais novo. Na cultura nepalesa, filho do sexo masculino é muito importante, pois são eles que cuidam dos pais na velhice.

Ao examinar a criança, percebi que a condição dele era bem grave. Sua respiração estava muito rápida e o nível de oxigênio no sangue muito baixo, além de estar bem fraco e não conseguir se alimentar. Conversei com os pais sobre a possibilidade de transferir o paciente para Katmandu, pois havia um risco de o quadro se agravar e precisar de recursos não disponíveis no interior. O pai ouviu atentamente e me disse: “Doutora, sou muito pobre” (em Katmandu, os serviços de saúde são pagos, enquanto no hospital de MSF todos os serviços ofertados são gratuitos). Respirei fundo, comovida, e respondi: “Tudo bem, vamos mantê-lo aqui e fazer tudo o que for possível”.

Iniciamos antibiótico, hidratação na veia, fizemos vários aerossóis (nebulizações) e administramos oxigênio. Passei a noite no hospital, angustiada com a possibilidade de perder esse paciente. Para minha felicidade, e, principalmente, dos pais, após um dia de tratamento e cuidados intensos, Dev Raj começou a se recuperar. Voltou a falar e a se alimentar, foi aos poucos deixando de precisar de oxigênio e, após uma semana, estava completamente curado. O pai estava radiante e a mãe me deu uma goiaba como forma de agradecimento. Toda a equipe ficou bem feliz com esse desfecho.

Ao final de minha participação no projeto, em outubro, percebi que um dos nossos grandes papéis no Nepal é ser exemplo para os profissionais locais. Exemplo de dedicação, compromisso e de como cuidar melhor dos pacientes. Após dois meses, consegui perceber o quanto a maioria dos profissionais de saúde nepaleses que trabalhavam conosco aprenderam e se sentiram motivados pelo trabalho humanitário.

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