Nos bastidores da ajuda humanitária

A administradora brasileira Renata Viana fala sobre sua primeira experiência em projeto dedicado a doenças crônicas em Embu, no Quênia

Nos bastidores da ajuda humanitária

Shantel é uma menina de dois anos. Ela vive numa casa de um único cômodo com suas duas irmãs e seus pais. A casa da Shantel não tem eletricidade, nem banheiro e tampouco água encanada. Sua precária casa fica numa pequena comunidade na cidade de Embu, no Quênia. Lama e poeira estão por toda parte, mas Shantel não conhece nada diferente ou melhor que isso. Sua mãe é uma costureira que batalha para conseguir dinheiro suficiente para comprar milho ou farinha de trigo para a família. Seu pai está desempregado e vive de pequenos trabalhos para conseguir custear as taxas escolares anuais, cobradas pelo governo, de suas filhas e também para pagar aquilo que, apesar de tudo, é enfim um teto. Eu conheci Shantel por causa de MSF.

A organização humanitária internacional decidiu abrir um projeto dedicado a doenças crônicas em Embu, uma cidade rural situada a 120km a nordeste de Nairobi. O projeto em Embu é o que MSF chama de “projeto por opção”, devido ao fato de que não lida com as usuais emergências (calamidades naturais, guerras e epidemias) que clamam em tantas partes do mundo por assistência humanitária. Ocorre que MSF percebeu que considerável parte da população queniana não possui acesso a tratamento adequado para certas doenças como diabetes, hipertensão, epilepsia e asma, doenças essas que, quando não controladas, podem ser a causa de sérias complicações para seus portadores. A falta de acesso ou a falta de tratamento adequado para essas doenças compõe no país desafios muito semelhantes aos que o HIV apresentou há cerca de 15 anos. Em 2010, as estatísticas já indicavam doenças crônicas como causa de 28% das mortes no Quênia. Mais alarmante que isto são as projeções de que até 2020 essas mortes podem ultrapassar as provocadas por doenças contagiosas.

Felizmente, MSF decidiu trabalhar para a redução dessa taxa de mortalidade, implementando no Quênia um programa especificamente destinado ao tratamento de algumas das mais frequentes doenças crônicas no país. Trata-se de um projeto de “apoio/assessoria”, por meio do qual MSF oferecerá treinamento, ferramentas, medicamentos essenciais e também melhorias estruturais nas instalações de algumas clínicas públicas nos arredores de Embu. O propósito não é substituir o sistema de saúde pública local, mas sim oferecer suporte para o desenvolvimento e melhorias da situação atual. Com isso, espera-se que, em alguns anos, as clínicas selecionadas possam manter o padrão recomendado e dar prosseguimento sozinhas, tornando-se referência no Quênia em termos de tratamento de doenças crônicas.

Eu fui selecionada para integrar o time que daria início ao projeto. Assim, em minha primeira missão com MSF, assumi o posto de Gerente de Recursos Humanos e Finanças, encarregada de trabalhar junto com outro “primeira-missão” (o Logístico), para delinear a configuração inicial do projeto. Por sorte, nós pudemos contar com o suporte dos coordenadores da missão no Quênia (baseados em Nairobi) e também dos essenciais profissionais nacionais, que haviam começado os trabalhos duas semanas antes da nossa chegada. A equipe baseada em Embu é atualmente composta por 30 quenianos e 5 profissionais internacionais de diferentes países.

Lidar pela primeira vez com as responsabilidades administrativas de um projeto de assistência humanitária foi bastante desafiador. Incontáveis despesas, recibos, contas, dinheiro, reuniões, além das inúmeras questões de recursos humanos: pode ser excessivo até mesmo para alguém que sonhou por tantos anos em trabalhar para o setor humanitário. Mas a grande ironia foi entender a minha importância e contribuição em meio a tantos sentimentos envolvidos nessa totalmente nova experiência. Afinal de contas, eu não estava em contato direto com os beneficiários. Eu realmente não estava lidando com os quenianos que supostamente seriam assistidos pelo ‘trabalho humanitário’ que eu visualizava na minha mente sempre que sonhava em deixar minha zona de conforto para ajudar pessoas em necessidade em alguma parte do mundo. Eu fazia parte de uma das organizações que mais admirava, uma entidade internacional médica não-governamental, neutra, imparcial e sem fins lucrativos, e lá estava eu tentando entender o meu papel naquilo tudo: eu, advogada por formação, sonhadora por natureza e trabalhadora-humanitária-de-primeira-viagem por insistência. Durante este processo, com grande frequência tive que dar explicações às pessoas sobre o fato de que eu trabalhava para MSF, apesar de não ser médica. E tudo bem. Com o tempo, ficou muito claro o quão importante a equipe de apoio é para aqueles na linha de frente!

Mas e quanto à Shantel? A pequena e doce inocente menina queniana, minha vizinha em Embu, cuja mãe (Catherine) foi a primeira pessoa que conheci na cidade no meu primeiro dia por lá. Shantel se tornou pra mim um símbolo importante da diferença que podemos fazer nas vidas das pessoas apenas sendo gentis e demonstrando que nos importamos. Sua mãe achava que eu estava sendo solidária ao lhe dar ideias de negócios. Que eu era uma boa ‘mzungo’ (“estrangeira” em Kiswahili), como costumam se referir aos estrangeiros de forma geral. E que eu fui responsável por mudar as perspectivas de vida de sua família. Mas o que ela não percebeu foi o quanto ela e sua família contribuíram na mudança do meu próprio ponto de vista, tanto profissional, quanto pessoal. Elas foram o mais próximo que cheguei dos “tradicionais-beneficiários-de-ajuda-humanitária”, mas quem realmente se beneficiou fui eu.

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