“O que faço com todas essas histórias que escuto?”

Foto: Mariana Abdalla/MSF

Gabriela Serenato, psicóloga de MSF, conta como foi sua primeira experiência humanitária em um projeto de assistência a migrantes em Roraima

Como psicóloga, sempre senti a necessidade de estar onde a escuta se faz necessária. Por esse motivo, no início de 2020, decidi que Roraima era onde gostaria de ter minha primeira experiência na área humanitária. Eu vinha acompanhando o crescimento do fluxo migratório venezuelano para o Brasil nos últimos anos pelas notícias e cheguei a Boa Vista em janeiro de 2021.

No começo, lembro que pensei: “O que faço com todas essas histórias que escuto?”. Após ouvir tantos relatos perpassados por diferentes tipos de violações humanas — sem nenhuma condição de sobrevivência em seu país e em busca de uma vida melhor do que a que tinham lá, migrantes e requerentes de asilo cruzam a fronteira e vivem em situação de rua, com acesso precário a saúde e outros serviços básicos —, os sentimentos que prevaleciam eram sempre de frustração e impotência.

Ao longo desses 11 meses, entendi que esses sentimentos poderiam me acompanhar, mas que algo mais importante estava acontecendo como resultado da troca com cada pessoa que escutei: a possibilidade de conhecer a visão de mundo, as ideias, as dores, as alegrias do outro e de ver, na prática, a potência que a relação paciente-psicólogo pode ter. A resposta para a pergunta que não saía da minha cabeça veio pelos caminhos construídos com cada paciente.

Conheci muitas pessoas que são exemplos de força e enfrentamento. Mulheres sobreviventes de violência doméstica que, por meio do suporte psicossocial, passaram a questionar o que estavam vivendo e encontraram uma forma de se reinventar e sair de relacionamentos abusivos. Pessoas que, mesmo sem saber a língua local, encontraram uma maneira de trabalhar e levar sustento para seus familiares que ficaram na Venezuela. Ou crianças que passaram dias de medo e insegurança atravessando a fronteira e que, ao chegarem ao Brasil, encantaram-se com o novo idioma e os sabores e as cores da bandeira.

Acredito que parte do trabalho é possibilitar um espaço de ressignificação para essas histórias, que muitas vezes vêm acompanhadas de experiências de silenciamento e invisibilidade. Uma frase que escuto recorrentemente ao final das consultas é: “Obrigada por ter escutado o que eu tinha a dizer. Nunca ninguém havia parado para escutar minha história.” E essa escuta, que pode parecer pouco, diante de tantas necessidades que essas pessoas têm, mostra-se essencial. É incrível ver como elas encontram uma forma de lidar com o que estão vivendo e presenciar a transformação por meio da palavra, do acolhimento e da expressão.

A experiência da migração é vivida por cada pessoa de maneira diferente, mas é importante reconhecer também sua dimensão coletiva. Certa vez, após uma atividade psicossocial, um senhor nos relatou que, enquanto escutava outros participantes do grupo contarem suas histórias, conseguiu se dar conta de tudo o que ele também estava vivendo e percebeu o esforço que vinha fazendo nos últimos dias para enfrentar todos os desafios que o deslocamento forçado lhe havia imposto.

O trabalho na área da saúde mental é um eterno aprender para desaprender. Escutar a dor do outro é sempre um desafio e uma grande responsabilidade, principalmente nesse contexto, em que a maior parte das pessoas nunca teve acesso a um atendimento psicológico. Não podemos nos deixar afetar a ponto de adoecer; mas, sem nos afetar, esse trabalho tampouco é possível. Por isso, a cada encontro, eu também vou ressignificando minha história e aprendendo (ou desaprendendo) meu papel como psicóloga dentro de Médicos Sem Fronteiras.

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