O trabalho de uma pediatra em meio a um cenário de destruição e esperança

Junia Cajazeiro conta sua chegada à cidade de Mossul, no Iraque

O trabalho de uma pediatra em meio a um cenário de destruição e esperança

Iraque foi meu terceiro projeto com MSF. Primeira vez no Oriente Médio. Mossul, uma cidade pós-guerra. Eu gosto de entender o contexto de onde estou indo, entender as alegrias e mazelas daquela população para tentar entender um pouco mais suas dificuldades e tentar me colocar no seu lugar. Isso, além de tudo, facilita meu trabalho.

Li sobre Mossul: completamente destruída, principalmente a região oeste. Uma população gigante, quase 1 milhão de pessoas que saíram durante a guerra e retornaram recentemente, para um lugar sem infraestrutura nenhuma. Isso significa que essa população está exposta a vários tipos de doenças. Meus pacientes (sou pediatra) seriam crianças com grande risco de desenvolver doenças respiratórias, infecções intestinais, além de surtos de doenças evitáveis, como o sarampo. Sem contar o impacto psicológico.

Após muita leitura, alguns vídeos, muito amor da minha família e de amigos, me senti preparada para ir. Mas a gente nunca está pronta. Porém, por ser meu terceiro projeto, isso eu já sabia e aceitava.

Após algumas muitas horas de voo, e mais alguns aeroportos, chego a Bagdá. Cheguei no fim do verão, fazia uns 42º C na sombra. E escutei: “ah, que bom que você chegou nesta época, agora a temperatura está bem melhor”. Eu me sentia dentro de um forno. Além do calor, eu tinha que estar toda coberta por causa do islã mais conservador; além do véu, tinha que me cobrir até os pulsos e tornozelos.

Chegamos a casa de MSF, eu e mais alguns outros profissionais internacionais. Dentre eles um médico emergencista da Irlanda, que seguia para Mossul assim como eu, mas com a diferença de ser seu primeiro projeto. Ah, como me lembro desse sentimento de ir para o primeiro projeto! Tudo tão novo e tão diferente, tantos sotaques de todo o mundo. Muitas dúvidas, muitas expectativas. Agora era eu quem explicava sobre os procedimentos em MSF, as muitas siglas, as muitas posições e nossas responsabilidades. Acho que vamos nos dar bem, pensei.

Passamos alguns dias em Bagdá, para procedimentos burocráticos. Nesse meio tempo tivemos algumas conversas sobre Mossul. Nada do que eu li se comparava aos relatos daqueles que já tinham ido à cidade. Pessoas que trabalhavam em MSF há 20, 25 anos, me contavam emocionadas que nunca haviam visto algo tão devastador. Apesar de ter visto situações muito impactantes, nunca tinha estado em algum local de pós-conflito. Eles, já, e ainda assim se impressionavam com o que tinham visto. As cores do que me esperava tomavam forma. Talvez mais cinza do que eu esperava.

Depois desses dias, viajamos para Erbil, capital do Curdistão, no Iraque. Os curdos são mulçumanos, mas menos rígidos em relação ao uso do véu e de roupas. Erbil não foi afetada pela guerra, uma cidade grande como as nossas, talvez com um trânsito um pouco mais caótico, mas a mesma infraestrutura. Após mais alguns dias em Erbil para mais burocracias, finalmente estávamos partindo para Mossul. Ocorre uma mudança incrível no caminho entre Erbil e Mossul. Temos que colocar o véu, em respeito à cultura local. Essa mudança precisa acontecer entre um check point e outro. Depois colocar o véu se tornou usual para mim. Até aprendi várias formas de prendê-lo com as nossas tradutoras e enfermeiras.

Chegamos a Mossul. Deu e ainda dá um aperto no coração quando estamos chegando à cidade e vemos uma espécie de cemitério improvisado. Muitas covas e o sinal da lua crescente (símbolo do islã) sobre elas. Tantas covas. Tanta gente que teve sua vida interrompida pela guerra, pela fome, pela miséria associada à guerra. Quando vamos andando pela cidade é isso que vemos: prédios destruídos, bombardeados, metade caindo e outra metade sendo utilizada para moradia ou comércio, carros queimados, marcas de muitos tiros nas paredes. Essa visão ainda é clara na minha mente. A violência que isso representa.

Então, chegamos ao hospital de MSF. Um prédio em que antes funcionava uma unidade de atendimento básico. Ao perceber o grande número de pessoas retornando e que poucos hospitais na região oeste de Mossul estavam funcionando, MSF definiu que abriríamos uma unidade ali: pronto socorro, maternidade e enfermaria de pediatria com uma unidade neonatal.

Isso foi logo após o fim da guerra. Eu cheguei lá e o hospital estava funcionando há um ano, equipe bem formada, hospital sendo reformado para aumentar sua capacidade e poder atender a população que retornava. Mike, o médico irlandês, já entrou no pronto socorro, ávido por iniciar seu trabalho com MSF. Eu fui conhecer a infraestrutura do nosso hospital, a farmácia e os outros departamentos. Conheci os coordenadores locais, algumas mães de pacientes. Fui me familiarizando com os locais no hospital e descobrindo quem procurar caso precisasse de algo.

Trabalhei lá por três curtos, mas maravilhosos e intensos, meses. Vivenciei algumas histórias de pessoas que me marcaram. Por exemplo, uma mãe que pediu a minha presença quando ia dar à luz. Eu desci para a maternidade, com um certo estranhamento, uma vez que esse pedido não é comum e pediatra só vai ali para os partos complicados. Ao chegar, confirmaram que era uma gravidez sem risco e o trabalho de parto ia bem.

Fiquei. Esperei. O bebê nasceu. Aí veio meu segundo estranhamento: ela segurava seu bebê contra o seio, chorando, muito emocionada. No Iraque, as mães normalmente não mantêm os bebês com elas, elas os vestem e os colocam bem apertados dentro de um lençol. Pois bem, com ela foi diferente. O bebê estava ótimo. Sequei-o, cobri e o mantive no colo da mãe. Quando eu estava saindo da sala a mãe grita algo e a tradutora pede para eu voltar; a mãe queria me dizer algo. A mãe me agradecia por estar ali pelo filho dela. Que ela sabia que normalmente a pediatra não estaria ali, mas que ela tinha muito medo. Aquela era sua terceira gravidez. O primeiro filho tinha três anos quando morreu, na época da guerra, de fome. A segunda gravidez ela também perdeu. Talvez de fome, talvez pela falta de infraestrutura, talvez por tudo a que ela tinha sido exposta. Aquela era sua terceira gravidez e ela tinha muito medo de perder aquele bebê tão esperado. “Mohammed. Vai se chamar Mohammed como o profeta. Muito obrigada, doutora. Allah a proteja.” Agradeci e sai. E chorei. Quantas mortes. Quanta violência. Quanta dor. Mas essa dor eu não vi em seus olhos. Vi em seus olhos um brilho. Uma esperança. Essa esperança não estava apenas nos olhos dessa mãe. Estava nos olhos de todos. Da nossa equipe no hospital, dos nossos pacientes.
 

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