“Outras escolhas para além dos silêncios”

Foto: Arquivo pessoal

Ionara Rabelo compartilha sua percepção sobre os desafios e as angústias enfrentados pelas mulheres na maternidade de Khost, Afeganistão, onde atuou como coordenadora de atividades de saúde mental entre abril e maio de 2022.

“Os primeiros sons da manhã são de passarinhos. Nós moramos* em um alojamento bem ao lado do hospital. Na frente do quarto, há muita grama, flores e algumas árvores. Elas parecem ser de amoras, mas têm uma cor branca esverdeada, embora os frutos sejam doces como as amoras no Brasil.

Nós mesmos preparamos o café e, logo depois, já caminhamos quase que com outro corpo, uma outra vestimenta, um outro olhar. Estamos em um país muçulmano e precisamos cobrir a cabeça, até mesmo a postura corporal parece se alterar. Com o uso da máscara – em função das precauções contra a COVID-19 – só nos resta os olhos e mãos descobertos. Na maternidade de MSF em Khost, são realizados em média 60 partos ao dia, num país devastado pela guerra, pela pobreza e pela falta de acesso a serviços de saúde. O primeiro encontro do dia é uma reunião médica para o repasse das principais ocorrências do último plantão e a organização do que vai ocorrer no restante do dia.

Já nos corredores das enfermarias, ou mesmo no prédio onde estão as salas de parto, a primeira coisa que eu busco são os sons da maternidade: gritos, choro ou mesmo silêncios. Aproximo-me do silêncio daquelas mães que estão sozinhas com o olhar cansado, ou mesmo um olhar assustado e, outras vezes, um olhar triste. Há uma grande diferença nos silêncios: há silêncio de contenção, dor, desistência, silêncio de luta e enfrentamento. Aprendi demais sobre a diversidade dos silêncios nesse projeto.

Aproximo-me com um sorriso por trás da máscara, um toque, quando pertinente, e depois busco pela tradutora. Já consigo dizer algumas palavras, como cumprimentar e dar ‘bom dia’ nesse novo idioma. Apresento-me, digo que sou psicóloga e que vim do Brasil. Em seguida, vem a primeira pergunta: “Como eu posso te ajudar?”

Como é muito incomum ter uma psicóloga nesse país, grande parte das vezes, eu preciso de um tempo para que as mães entendam a diferença entre uma médica, uma obstetriz, uma enfermeira e o meu trabalho como psicóloga. Eu venho em busca dos sons da alma, das dores que as outras pessoas não vão tocar.

Encontro várias vozes, tons de pele, cores de vestimentas diversas, mãos calejadas, mulheres com mais de sete a 10 filhos. São inúmeras histórias de perdas de bebês ligadas à falta de cuidados pré-natais adequados. E a cada nova gestação, essas mulheres arriscam a própria vida na expectativa de ter mais um menino. Às vezes, a pressão social é tanta que elas se negam a olhar ou tocar as bebês do sexo feminino. Angústia e medo não são suficientes para descrever os sentimentos que essas mães devem ter ao voltar para casa com mais uma menina. Em um país com muita desigualdade e onde a perda de direitos das mulheres se acumula diariamente, ser menina, ser mãe, ser avó, pode tornar-se um fardo que poucas pessoas podem dimensionar.

Encontro muitas histórias de sofrimento e de dor pela perda de um bebê. Quando busco entre essas mães que estratégias para enfrentar a dor poderiam ser ativadas, me deparo com uma imensidão de reações. A depender da religião, as mães podem demonstrar resignação e aceitação, pois perder o bebê pode significar que aquela mãe já tem a garantia de ir para o céu porque o seu bebê estará lá esperando por ela. Por outro lado, o desespero e a angústia se fazem presentes ao perder um bebê por uma má formação congênita. Nesse caso, pode haver um impacto muito negativo na vida da mãe, a depender da comunidade onde ela vive, pois de acordo com a cultura local, ela pode passar a ser vista como uma mãe que deve ter feito algo de muito ruim para que não fosse abençoada com um filho ‘saudável’.

As diferentes formas de expressar os sentimentos – às vezes com angústia, outras com um silêncio resignado ou com o desespero para que a família não saiba sobre o que provocou a morte do feto – mostram o quanto essas mulheres lutam para construir caminhos, se superar, enfrentar cotidianamente a opressão, o ódio e a violência.

Em algumas histórias, depois que alguns bebês não resistem, o sofrimento é tanto, a violência é tanta, que algumas precisam criar um filho imaginário que sobreviva. Entre dor e desejo, precisam das ilusões. Dão nome a esse filho, criam histórias e mesmo assim continuam a sofrer a punição de familiares ao enlouquecer. Será que cabe um diagnóstico ou será que cabe muita lágrima para perceber o quanto o enlouquecimento constrói formas de lidar com a bruta realidade que alija, mutila e, em alguns casos, interrompe a vida por meio do suicídio?!

Como psicóloga, preciso de um novo dicionário que compreenda a fé, a resistência e como compartilhar a dor e acolher as crenças, pois para muitas mães perder um bebê pode significar entrar no céu após o inferno de vida que aqui tiveram que enfrentar.

E no fim da tarde, voltamos ao alojamento, onde dá tempo de tomar um chá e conversar. Dá tempo para nos angustiar e compartilhar a indignação com algumas situações que presenciamos. Dá tempo de nos encantar com o nascimento de trigêmeos e as altas dos bebês que estavam na UTI. Criamos novos finais para cada dia, pensamos nos enfrentamentos que esses bebês terão. Dá até tempo para acreditar que um dia tudo pode mudar, e essas meninas e mães terão outras escolhas para além dos silêncios”.

* Este diário foi escrito pela profissional quando ela ainda estava no país.

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