Pense no Haiti

Foto: Arquivo pessoal

A brasileira Beatriz Linhares compartilha os desafios que vivenciou em sua experiência atuando como gerente de farmácia em Port-à-Piment, no Haiti.

Eu estava no Haiti até setembro de 2022 e retornei um pouco relutante se escreveria ou não este diário. Gosto de escrever porque por meio dos meus olhos e o do que vivi, posso trazer a imagem de um lugar que muitos que leem jamais poderão ir ou muito menos imaginar o que acontece por lá. Mas o Haiti precisa ser visto, olhado, escutado, acolhido e mostrado, e isso é parte do que o nosso trabalho lá possibilita.

Para os que não lembram, em agosto de 2021, a cidade de Port-à-Piment sofreu um terremoto, e lá, temos um projeto de Saúde Sexual e Reprodutiva no qual fornecemos cuidados à saúde da mulher de forma integral. E com esse terremoto, nossas atividades foram comprometidas, mas retomada aos poucos. E, desta vez, em vez de trabalhar na capital, Porto Príncipe, fui dar suporte nessa pequena cidade beirada pelo mar do Caribe e afetada pelas consequências de catástrofes recorrentes.

Infelizmente, o terremoto afetou nossas atividades, pois o hospital em que atuávamos foi gravemente atingido e, por razões de segurança e risco, ficamos impossibilitados de continuar trabalhando nele. Assim, tivemos que nos reinventar e construir uma maternidade improvisada, já que a nossa prioridade era seguir levando cuidados às mulheres da região sul do Haiti.

Então, entre os anos de 2021 e 2022, o nosso maior desafio tem sido garantir esses cuidados numa estrutura improvisada e, ao mesmo tempo, construir e estruturar uma grande maternidade de cuidados mais complexos, onde possam ser realizados partos normais seguros, cesarianas, cuidado neonatal especializado, bem como assegurar que os cuidados mais simples também sejam garantidos, como consultas de pré e pós-natal, no qual as mulheres têm acesso aos melhores métodos de contracepção.

Como farmacêutica, o meu trabalho estava voltado para garantir que os medicamentos, materiais médico-hospitalares, equipamentos biomédicos e de laboratório estivessem disponíveis seguindo as Boas Práticas de Distribuição (BPD), para que ao final estivessem disponíveis para a etapa da assistência. Além disso, um dos meus objetivos era treinar o farmacêutico local, para que ele pudesse estar apto a realizar as responsabilidades da minha função.

O período que passei no Haiti não foi nada fácil, costumo dizer que lá todo dia é um novo dia, não dá para prever ao certo o que vai acontecer no dia seguinte. Voltei em um momento em que mais uma vez a crise do petróleo se agravou, a inflação aumentava dia após dia, havia poucas oportunidades de emprego, instabilidade política e, com isso, a população começou a se revoltar. Dentro de um cenário de bloqueios de estradas e aumento dos índices de violência na capital, eclodiu mais uma epidemia de cólera.

Apesar de tudo isso, uma memória boa que me vem era ver pela manhã as crianças todas arrumadas, com roupas iguais e com cores que combinavam, caminhando para a escola, saltitantes e brincando, distantes no pensamento, embora perto fisicamente de tantos infortúnios. Tudo isso me lembra uma música escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil intitulada Haiti, que diz o seguinte: “Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária (…) E quando você for dar uma volta no Caribe (…) Pense no Haiti. Reze pelo Haiti. O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui”. É difícil manter a esperança em meio a tudo isso, mas ter Médicos Sem Fronteiras atuando ajuda a minimizar em alguma medida o tanto de sofrimento que se vive por lá.

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