Preparação para um surto de cólera

O médico Tiago Valim narra passo a passo a estratégia para atender os primeiros casos em Kilo, no Iêmen

Preparação para um surto de cólera

O diário de bordo de Tiago Valim foi escrito no dia 09 de maio de 2017, no começo do surto de cólera que ainda perdura no Iêmen. De março até o momento, foram registrados mais de 680 mil casos suspeitos da doença e 2.090 mortes. Fique com o relato do médico:

Amanhã completa um mês que estou em Kilo, no Iêmen. Passou rápido, mas o trabalho não para e a notícia mais recente é que está começando um possível surto de cólera no país. A falta de higiene e saneamento básico, junto com a pobreza e falta de acesso a alimentos e água de qualidade, além do fim da estação seca e início da chuvosa, formam o conjunto perfeito para o surgimento e a disseminação da doença em larga escala. Existem casos confirmados de cólera na capital do país e em duas cidades grandes próximo a onde estou. A resposta tem que ser rápida. O risco de uma epidemia com altas taxas de mortalidade é grande.

A partir da confirmação de casos de cólera, a tendência é que se criem centros de tratamento da doença, a fim de sistematizar o atendimento dos casos suspeitos. Os casos de gastroenterite aguda com desidratação são recebidos e realiza-se terapia de reidratação rápida e curta, tirando o paciente do risco de óbito trazido pela doença. Outro objetivo desses centros de tratamento é isolar os casos suspeitos, pois a cólera é uma doença altamente contagiosa.

Aqui em Kilo, assim que surgiram notícias sobre casos suspeitos de cólera no país e notamos um aumento no número de casos de diarreia e vômito com desidratação, houve uma resposta rápida de todo o departamento administrativo, logístico e de saúde para construir o nosso centro de tratamento de cólera. Em um dia, construiu-se uma tenda na área externa do hospital, como um hospital de campanha, onde ficam internados os casos com desidratação moderada e grave. Também organizou-se uma pequena área onde ficam os casos de desidratação leve, para observação e orientações gerais.

Desde a triagem, esses casos já são separados dos outros casos recebidos no pronto-socorro. A área frequentada por estes pacientes é totalmente isolada do restante do hospital. Na entrada e na saída, todos devem lavar as mãos e as solas dos calçados com água com cloro.

A desidratação causada pela cólera é súbita e grave, podendo causar morte se não tratada agressivamente. A rotatividade de pacientes internados é alta; o objetivo é tratar o mais rápido possível a desidratação com soro na veia e iniciar assim que possível uma terapia de hidratação oral. Quando o paciente para de vomitar e consegue beber o soro, vai para casa e, se piorar, volta.

A logística disso tudo é enorme! Começa com a organização do espaço, construir a tenda, trazer as macas, medicamentos, materiais para registro dos casos. Recrutamento de recursos humanos com urgência. Construção de banheiros especiais para os pacientes, tratamento especial do lixo produzido no centro de cólera. Orientação de toda a equipe, pacientes e familiares com os cuidados de higiene e com o lixo.

Estamos funcionando há menos de uma semana e recebendo em média 30 casos suspeitos por dia. O número é pequeno quando comparado ao de outras cidades, onde recebem mais de 100 casos por dia. Isso tem permitido à nossa equipe se organizar, corrigir falhas e se preparar para uma possível epidemia confirmada também na nossa região.

A cólera é uma doença distante da realidade da saúde pública no Brasil atualmente. Tenho lembranças remotas da epidemia de cólera no nordeste do Brasil no início da década de 90. Na faculdade, nem me lembro de tocarem no assunto. Quando fui a Viena em janeiro deste ano, para um curso de uma semana antes de começar com MSF, passamos um dia inteiro em uma dinâmica sobre como preparar um centro de tratamento de cólera. Mesmo assim, não imaginei que enfrentaria essa situação nesta missão. Cá estamos. As necessidades só aumentam. A guerra e mais uma de suas consequências.
 

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