Profissional de MSF relata cotidiano de trabalho em um dos maiores projetos humanitários de MSF em todo o mundo

Foto: Arquivo pessoal

A brasileira Luisa Nogueira, farmacêutica clínica, escreve relato após um mês em Abs, no Iêmen.

Desta vez estou no Iêmen, em Abs, uma cidade no norte do país. Esse projeto é uma das maiores respostas humanitárias de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em todo o mundo. Cheguei no começo de março, então já estou há quase um mês trabalhando aqui*. O  plano original é ficar até o final de novembro, ou seja, serão nove meses no Iêmen. O projeto em Abs possui atividades de nível terciário, isto é, de alta complexidade, e também atividades descentralizadas, como a sensibilização comunitária.

O Hospital Abs é grande e possui maternidade, neonatologia, pediatria, unidade nutricional, cirurgia e pronto-socorro. Além disso, temos um laboratório e um banco de sangue. A farmácia, área onde trabalho, atua em todos os setores, uma vez que todos eles precisam de medicamentos, materiais e equipamentos para prestar uma boa assistência aos pacientes.

Aqui, há muitos desafios profissionais e a maioria deles está relacionada a questões políticas e culturais. Por exemplo, alguns medicamentos e tratamentos são proibidos, o que torna o trabalho mais difícil.

Além dos desafios profissionais, temos os desafios pessoais, para nós, mulheres. Temos que usar a abaya e o hijab o tempo todo no trabalho, e a comunicação também precisa ser cuidadosa – um simples aperto de mão, por exemplo, não pode partir de você. É preciso resiliência para se adaptar por aqui, porque a vida pessoal fica bastante diferente.

Uma coisa boa é o trabalho. A farmácia, por exemplo, é enorme e tem uma grande quantidade de itens, com um bom estoque. O trabalho do farmacêutico é supervisionar as atividades inerentes ao ciclo da assistência farmacêutica. Precisamos selecionar os melhores medicamentos e materiais para utilizarmos no projeto e programar a quantidade correta para solicitações. Aqui temos problemas sazonais, como a malária, bronquiolite e as picadas de cobra, e também há o Ramadã, período em que a dinâmica muda muito. Por isso, o trabalho precisa ser bem planejado. É necessário auxiliar nos processos de aquisição de medicamentos e fazer ordens mensais para recebimento de medicamentos da cidade de Sanaa, armazenar os itens com qualidade e segurança, programar a eliminação de medicamentos vencidos, fazer boa gestão de armazenamento e distribuição para o hospital e unidades finais de uso e, por fim, fornecer com segurança os medicamentos para os pacientes.

Aqui, as atividades clinicas são muito importantes. Temos um programa de prescrição de antibióticos,  o stewardship (conjunto de intervenções coordenadas para melhorar e mensurar o uso apropriado de antimicrobianos), que é bem necessário para evitar resistências bacterianas na população. Temos ainda uma atuação direta nas unidades hospitalares e na conferência de prescrições, acompanhamento de pacientes com clínicas específicas e processos de farmacovigilância. E isso é ótimo, porque a farmácia conta com um supervisor, então o farmacêutico que vem pra cá tem mais possibilidade de ficar livre pra trabalhar dentro do hospital e acompanhar os pacientes e suas prescrições. Agora, por exemplo, estou revendo nossa lista de medicamentos essenciais, organizando todos os estoques e registros de consumo no hospital e conferindo as prescrições da ER.

Outra coisa boa é a equipe que temos aqui, formada por profissionais locais e aproximadamente 24 profissionais internacionais móveis. Então é um grupo grande. Temos uma boa convivência na casa que nós, profissionais internacionais, compartilhamos e aproveitamos nossos momentos juntos. Os profissionais locais são muito solícitos e sempre nos ajudam. A maioria deles não fala inglês, então às vezes é necessário estar com um tradutor para facilitar a interação. À noite, temos aulas de árabe e isso ajuda muito a convivência diária.

Quando aceitei fazer parte do projeto, estava apreensiva com a segurança, mas Médicos Sem Fronteiras (MSF) é muito respeitada aqui. É claro que temos muitas regras de segurança e temos que cumpri-las. E é importante pensar que não é só a segurança individual que está em jogo, mas a segurança de toda a equipe, dos pacientes e de todo o projeto. Posso dizer que me surpreendo com esse projeto todos os dias desde que cheguei, seja pelo trabalho ou pelas situações que vivencio. Sei que é um lugar onde podemos fazer algo pela população que tanto precisa de acesso à saúde, que sofre os efeitos de uma guerra, que é afetada pela intolerância e pela opressão, e que ainda assim resiste. Mais uma vez, obrigada MSF por levar saúde de qualidade a quem não consegue acessá-la e por nos dar a oportunidade de ser parte dessa história.

*Diário de bordo escrito no final de março de 2023.

 

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