“Quando eu me dei conta da realidade da população local, tudo fez mais sentido”

Luize Silva, profissional de MSF, no Sudão do Sul. Foto: Arquivo pessoal.

A brasileira Luize Silva, profissional de Recursos Humanos, relembra a primeira experiência com MSF, no Sudão do Sul.

Sou Luize Silva, de Salvador, na Bahia. Sou formada em Administração com MBA em gestão de pessoas e Recursos Humanos. Meu primeiro projeto com Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi em Juba, capital do Sudão do Sul, atuando como gerente de Recursos Humanos por nove meses*. O projeto é um dos maiores de MSF, e o grande número de profissionais, tanto locais quanto móveis internacionais, é um grande desafio.

Eu era responsável por todo o movimento da equipe em geral. Para os profissionais móveis internacionais, eu era responsável desde a chegada no local de trabalho até a saída no final do projeto. Quando recebíamos a data de embarque do profissional internacional, eu preparava a logística para instruí-los sobre o trabalho, o registro com o setor de imigração do país, transporte, acomodação e viagem para o projeto. Além dessas atividades de logística, eu também tinha que manter o controle de férias e era responsável por garantir que as políticas da organização estavam sendo seguidas.

Minhas responsabilidades eram divididas entre o escritório e a casa onde viviam os profissionais de MSF. Eu cuidava de toda a administração da casa – lá, trabalhavam nove pessoas e havia entre 20 e 25 moradores regulares. Esses moradores são os profissionais internacionais que estavam lotados na coordenação. Minha função ali era fazer as compras de alimentos e materiais, elaborar cardápio, ter certeza de que os quartos estavam com tudo funcionando e limpos, gerenciamento da equipe de profissionais da cozinha e limpeza, organização dos eventos e tudo relacionado à organização da casa para o bem-estar de todos.

No escritório, no setor de Recursos Humanos, éramos sete pessoas, incluindo três profissionais internacionais. Eu trabalhava diretamente com dois deles, que me davam assistência.

O início no Sudão do Sul foi muito desafiador. Mas quando eu me dei conta da realidade da população local, tudo fez mais sentido. Ali, a população tem muitas necessidades. Uma das principais é o atendimento de saúde que, sem MSF, seria muito difícil. Eu estava ali para trabalhar, mas, para além disso, aprender a ter mais empatia e a aceitar as diferenças.

Eu cheguei bem tímida. Era a primeira vez que eu estava no continente africano, a primeira vez em um projeto humanitário e a primeira vez com MSF. Era época de Copa do Mundo e, nos dias dos jogos do Brasil, eu colocava a camisa da seleção, e todos os profissionais sul-sudaneses de MSF vinham falar comigo sobre os jogadores do Brasil. Assim, iniciamos um carinho recíproco.

Trabalhar com Recursos Humanos no projeto foi perfeito, porque eu adoro trabalhar com pessoas e minhas atividades eram conectadas a todos os setores, então sempre estava indo aos outros departamentos e criando laços com as pessoas. Com o tempo, já estava em contato direto até com os fornecedores.

Entender a maneira como as coisas funcionam no local e sugerir mudanças de uma maneira respeitosa e amigável facilita qualquer trabalho. As compras, por exemplo, eram sempre entregues na segunda ou terça-feira. Certa vez, em um fim de semana, foi anunciado que na segunda-feira seria feriado. Fiquei muito preocupada, porque isso significaria que só receberíamos as compras na quarta ou quinta-feira, e teríamos problemas com o preparo da alimentação. Então liguei para o fornecedor, expliquei a situação e pedi para que ele enviasse a compra na segunda, mesmo sem receber a ordem do setor, que não estaria no escritório. Ele prontamente disse que não havia problema, pois sabia que eu era muito organizada e que confiava no meu trabalho.

Logo que começou a guerra no Sudão, país vizinho, fomos avisados de que os profissionais móveis internacionais de MSF que atuavam lá seriam retirados por questão de segurança e iriam para a nossa casa em Juba. Lembro que era domingo pela manhã e logo recebi a informação de que teríamos uma reunião à tarde para fazer todo o planejamento. Na reunião, ficou acertado que eu ficaria responsável por todo o processo de acolhimento e suporte a esses profissionais.

Eram seis pessoas. Logo, fui ao mercado comprar produtos de higiene, comidas e roupas, mesmo sem saber como eles eram. Preparei os kits e fiz toda uma mudança na casa, para que eles ficassem em quartos próximos e se sentissem bem-vindos e acolhidos. No dia seguinte, o coordenador-geral de MSF no Sudão do Sul foi à fronteira buscá-los e trazê-los para Juba. Na chegada, eles já ficaram superfelizes em ver uma placa na porta de cada quarto com a mensagem: “Seja bem-vindo à sua casa. Estamos felizes em ter você aqui”.

O plano era que eles ficassem lá por uns dias para terem todo o suporte e depois fossem para um hotel. Mas, quando perguntamos se eles gostariam de mudar, todos agradeceram, mas falaram que gostariam de continuar na casa, pois o acolhimento que eles estavam recebendo era o melhor que poderiam ter.

O que me deixou mais feliz foi conhecer gente de diferentes lugares, com vivências diversas, e muitos se tornaram amigos. Ouvir da equipe de MSF que eu fiz a diferença no projeto e que eles querem muito que eu retorne é muito gratificante. Não tenho dúvidas de que essa experiência foi a mais impactante da minha vida.

*Entre novembro de 2022 e agosto de 2023.

 

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