Recomeçar

Um relato após sete meses em Bangui como coordenador de suprimentos e logística

Em junho de 2016 cheguei a Bangui, República Centro-Africana, por onde ficaria pelos sete meses que se seguiriam. Eu poderia falar muito desse período em que tive o privilégio de viver experiências tão variadas e intensas. Percebi que havia algo comum nessas diferentes experiências vividas ali. Às vezes, aquela pessoa que tem as maiores razões para ser infeliz é a que também tem o sorriso mais bonito no rosto. Não há como não se impressionar com a resiliência, a força de vontade e a alegria de pessoas que tem a coragem de recomeçar vez após vez, depois de terem perdido tudo.

Situação de segurança

Precisei de algum tempo para me integrar ao contexto de Bangui. Por trás da aparente calma, se escondia uma situação de segurança bastante volátil. Instabilidade causada pelas constantes tensões existentes entre os muitos atores envolvidos nos conflitos do passado e que persistem: a população cristã, a população muçulmana frequentemente enclausurada no que chamávamos de PK5 ou bairro muçulmano de Bangui, os grupos de autodefesa muçulmanos do PK5, as Forças Armadas Centro-Africanas, as forças rebeldes de orientação muçulmana Ex-Seleka, as de orientação cristã Anti-Balaka, as Forças internacionais da ONU (Minusca) e da França (Sangaris), entre outros.

Com frequência surgiam situações de conflito que afetavam o funcionamento normal das equipes e geravam mudanças de estratégia e de prioridades. Em algumas ocasiões, tivemos até que trabalhar com equipes reduzidas ou fomos impedidos de ir aos locais de trabalho. No meio de tudo isso, tentávamos assegurar o acesso dos mais necessitados aos serviços básicos de saúde, nos adaptando a essa realidade, por meio, por exemplo, do deslocamento em comboio para reduzir os riscos durante o transporte. Tudo para oferecer cuidados de saúde tão importantes para uma população que precisa de muita força e energia para recomeçar a vida do zero, num lugar que foi todo destruído e não há onde buscar ajuda.
 

Logística dos projetos em Bangui

Nosso objetivo era garantir o funcionamento regular do projeto. Preocupava-me a grande quantidade de coisas que ainda deveriam ser feitas. As equipes estavam incompletas, a cadeia de aprovisionamento não conseguia responder aos imperativos do projeto e problemas em serviços essenciais, como o fornecimento de água, eram comuns.

Em meio a essa situação desesperadora, lembrei-me de algo que havia aprendido em meu primeiro emprego, logo ao me formar engenheiro. Estava perdido, olhando para minha mesa com um milhão de coisas a serem feitas. Não conseguia sair do lugar nem fazer nada. Foi então que, vendo-me naquela situação, meu chefe se aproximou e perguntou, com uma pitada de compaixão: “Como é que se faz um milhão de coisas?”. Aquilo era tudo o que eu queria saber naquele momento, mas não tinha a resposta. Vendo meu silêncio, e em meus olhos a vontade de responder, ele simplesmente me disse: “Uma coisa de cada vez. Uma coisa de cada vez é como se faz um milhão de coisas”.

Essa lembrança longínqua me trouxe calma. Pude, então, dar aquele “passo para trás”, necessário para priorizar as ações e começar a resolver os problemas mais urgentes e para fazer as coisas mais importantes.
 
Saúde da mãe e do recém-nascido

A República Centro-Africana, infelizmente, possui um dos piores índices de mortalidade infantil e materna do mundo. Por isso, um dos objetivos de MSF é melhorar as condições de saúde da mãe e da criança recém-nascida. Para assegurar a imparcialidade de nossas ações, em nosso projeto, mantínhamos uma maternidade na área de maioria cristã e outra no bairro muçulmano de Bangui. Com o nascimento de cada criança renova-se a vontade de lutar, recomeçar a vida, de forma que o respeito possa superar as diferenças, e que juntos possamos viver em paz.

Durante o tempo em que estive lá, foi muito gratificante poder trabalhar para melhorar essas duas maternidades. A reabilitação do serviço de neonatologia e da sala de parto, os trabalhos nos blocos operatórios, a construção de um novo espaço para estacionamento e para triagem, a reabilitação de um poço e a reorganização dos estoques e estabelecimento de ferramentas de controle e de gestão foram algumas das atividades realizadas.

Projeto HIV

Diante da situação de precariedade no que tange ao tratamento disponível para HIV/Aids e o nível de necessidades não atendidas, também tínhamos um projeto voltado para pessoas com o vírus HIV já em estágios avançados da infecção. Trabalhávamos apoiando o Hospital Comunitário de Bangui. Depois de muito trabalho, chegamos à conclusão de que precisávamos de outro parceiro para dar andamento ao projeto. A vontade de ajudar aquelas pessoas a ter acesso aos tratamentos de que necessitavam nos motivava a seguir em frente.

Campo de deslocados de Mpoko

Os conflitos entre milícias cristãs e muçulmanas e a guerra que se seguiu em Bangui em dezembro de 2013 causaram o deslocamento de milhares de pessoas. Grande parte dos cristãos buscaram proteção junto do aeroporto Internacional de Mpoko, da capital Bangui, onde se formou um campo de deslocados internos. Buscando responder às necessidades básicas de saúde no acampamento, que chegou a ter mais de cem mil pessoas, MSF manteve um hospital de campanha dentro do acampamento com maternidade, ambulatório, serviço de vacinação, internação, área de isolamento e farmácia.
No final de 2016, três anos após seu surgimento, cerca de 20 mil pessoas ainda viviam no campo de Mpoko, e o hospital da MSF continuava lá, atendendo às necessidades da população. Foi quando o governo decidiu fechar o acampamento, deixando milhares de pessoas vulneráveis, desalojadas, sem ter para onde ir, sem saber o que fazer e sem recursos suficientes para construir novas casas. Conforme o acampamento foi se esvaziando, começamos também os preparativos para fechar nosso hospital.

O fechamento desse hospital representou um enorme desafio logístico. Precisávamos fechar o hospital mantendo-o em funcionamento! Deveríamos receber e tratar novos pacientes até o último momento em que estivéssemos no hospital. Nossa segurança dependia de o hospital estar em funcionamento, ajudando a comunidade.

O que mais me marcou foi ver o profissionalismo e a dedicação de uma equipe logística unida, dando o sangue para alcançar o inalcançável. Foi um grande privilégio encarar esse desafio fazendo parte dessa equipe tão especial. E foi ainda melhor comemorar quando fizemos juntos o que parecia impossível! Tudo correu bem nesse fechamento. Ninguém saiu ferido e não houve perdas materiais imprevistas. O último paciente foi recebido uma hora antes do fechamento do hospital.

O fechamento do campo de deslocados de Mpoko e do nosso hospital foi muito significativo. Representou o recomeço para nossa equipe nacional e também para nós, profissionais internacionais, pois a partir daquele momento deveríamos buscar outro trabalho, em algum outro projeto de MSF. Foi também o recomeço para aquelas pessoas que viviam no acampamento, que apesar do pouco que tinham, tiveram de deixar tudo para trás e partir sem saber ao certo onde iriam recomeçar suas vidas.

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