A resiliência e receptividade do povo iraquiano

Natacha Parraguez fala sobre o trabalho no hospital de MSF em meio à gradual reconstrução da cidade de Mossul

A resiliência e receptividade do povo iraquiano

Estou sentada na varanda da casa, enquanto o imã* chama pelo alto falante da mesquita às preces do anoitecer. Uma brisa morna e incrivelmente reconfortante me cerca enquanto a voz do imã transmite paz em suas palavras cantadas. No céu, a noite vai pintando aos poucos o horizonte em tons de azul escuro e cinza. A vida insiste em seguir seu curso e, aos poucos, veem-se casas sendo reconstruídas e escombros retirados. A resiliência do povo iraquiano me surpreende sempre.

O projeto em que trabalho agora é um hospital de emergência, no qual uma pequena maternidade está ganhando cada vez mais espaço, uma vez que os politraumatizados (vítimas de combate) estão chegando em menor número a cada dia. Quando eu aceitei a proposta de projeto, a posição ainda era para enfermeira supervisora de emergência e pronto socorro. Porém, quem trabalha em MSF sabe que flexibilidade é sempre mais do que bem-vinda, visto que estamos sempre em situações instáveis. Com o número de pacientes adultos com traumas reduzido, o foco está mudando gradativamente para cuidado materno-infantil.

O hospital foi montado no espaço físico que antes fora uma unidade básica de saúde, portanto, a planta física teve de ser readaptada. Temos centro cirúrgico, sala de emergência, ala de internação pediátrica e, claro, a maternidade. O trabalho que a equipe de logística faz é sempre eficaz e muito bem feito. Com tudo seguindo os protocolos, fica fácil e gostoso dar continuidade ao trabalho iniciado por colegas que já deixaram o projeto.

Minha predecessora fez um trabalho incrível com os enfermeiros da pediatria, pronto socorro e com a comissão de controle de infecção hospitalar. Em apenas três semanas, ela fez grandes avanços, deixando a equipe pronta para crescer ainda mais. Meu objetivo nos próximos meses será treinar e dar o conhecimento necessário para que esses supervisores e equipe de enfermagem tornem-se mais qualificados e autônomos. A ideia é que eles aprendam a trabalhar numa equipe multidisciplinar, com padrões internacionais de qualidade, tudo seguindo os protocolos de MSF.

Eu já tive o prazer de trabalhar com equipes muito bem treinadas, na qual os enfermeiros foram convidados a se tornarem profissionais internacionais de MSF. Hoje em dia, este hospital em questão, ao invés de receber profissionais internacionais para virem ensinar, recebe esses profissionais para programas de qualificação. É nessa imagem maior que eu me fixo quando me deparo com algum desafio.

Nas primeiras semanas, estou observando tudo com cuidado, avaliando necessidades, sem fazer muitas intervenções. Essa alta rotatividade de supervisores é desgastante para a equipe nacional, portanto é bom ter respeito pelo seu momento de adaptação. Enquanto observo, vou tomando notas mentais do quanto posso incentivar o potencial de cada um ali.   

Aos poucos, vamos nos conhecendo e, preciso admitir, está sendo adorável! O povo iraquiano é aberto, receptivo, em pouco tempo a trata como um membro da família e até encontra uma semelhança com alguma tia ou prima. Os enfermeiros sempre me convidam para almoçar com eles e fica difícil atender a tantos convites de almoços de tantos setores. A comida é muito boa. Hoje, trouxeram um prato especial para mim, pois sabiam que eu gosto: biryani. Trata-se de um arroz-com-tudo-dentro, daqueles temperados com açafrão e outras especiarias. Apesar de haver combinado de almoçar com outra equipe, não pude desmerecer o carinho.

Os dias vão passando rápido, entre pacientes e observações. O clima aos poucos vai ganhando os tons de outono com tardes mais agradáveis e noites acolhedoras. Quando volto do hospital, guardo um tempo para mim e para apreciar esses momentos especiais na minha memória. Assim, todo o desgaste de muitas horas trabalhando, o confinamento e a distância de casa valem o dia.

* título dado ao sacerdote no islamismo

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