Tiros, ciclones e cólera

Porto Príncipe, 5 de agosto de 2013

E lá se vão dois meses desde que cheguei ao Haiti pra trabalhar com MSF. A intensidade dos acontecimentos em Porto Príncipe dá a impressão de que se passou muito mais tempo que isso. A começar pela intensificação da guerra de gangues de Cité Soleil, a comunidade onde vivemos em Porto Príncipe. Em uma dessas noites, estávamos todos na cozinha jantando despretensiosamente quando começamos a escutar tiros de metralhadora bem próximo de nós. Foram cerca de 15 minutos de combate entre a polícia e membros de gangues, bem em frente à nossa base! Resultado: seis baleados, sendo que quatro perderam a vida. Às vezes, com a rotina do trabalho, nos esquecemos do contexto em que estamos inseridos. Um combate ao bom estilo bang bang de Hollywood, como o que presenciamos, é uma maneira bastante eficaz de nos refrescar a memória… Escutamos tiros quase todas as semanas, mas tão próximo assim foi a primeira vez. Felizmente, MSF é muito respeitada tanto pelas autoridades haitianas como pela comunidade local, por todo o trabalho que fez por aqui antes, durante e depois do terremoto de 2010. Por isso, estamos, de certa forma, protegidos do lado de dentro do hospital, que é um território neutro.
MSF leva muito a sério o conceito de imparcialidade, por isso não recusa atendimento a nenhuma pessoa com base em ideologias políticas, religiosas ou de qualquer outra natureza. Por consequência, dentro do nosso hospital temos pacientes que podem vir de diferentes origens: membros de gangues, da polícia e mesmo da Minustah (além, claro, da grande maioria dos pacientes civis, as principais vítimas da violência urbana). Isso exige certo jogo de cintura para não misturar certos pacientes na mesma sala, um detalhe muito importante! A última coisa que precisamos é trazer conflitos para dentro do hospital. Quando um desses pacientes recebe alta, é também importante monitorar o movimento em frente ao hospital. Às vezes, há membros de gangues na porta, à espera de um acerto de contas. Todo cuidado por aqui é pouco.

Enquanto a novela das gangues se desenvolvia no mês passado, tivemos, ao mesmo tempo, a ameaça de sermos atingidos pelo ciclone Chantal, que, felizmente, provou-se alarme falso na última hora. Monitoramos durante quatro dias a evolução do ciclone desde as Antilhas, por meio de um site especializado em furacões. A previsão era de que ele passasse diretamente sobre Porto Príncipe, o que foi informação suficiente para evacuarmos a maior parte dos funcionários do hospital, incluindo nós mesmos. Fomos para a casa da coordenação do projeto em outra parte da cidade, que é feita de concreto e mais resiliente no caso de um furacão. Felizmente, aos 45 minutos do segundo tempo, o ciclone desviou de Porto Príncipe e perdeu força. Tivemos uma leve chuva, e foi só. A experiência valeu para lembrar o quanto somos frágeis perante a força da natureza. Tudo pode mudar muito rapidamente quando ela resolve se revoltar. A estação de furacões está ainda no começo e deve se intensificar do meio de agosto até o final de setembro. Monitorar as evoluções meteorológicas do Caribe pela internet virou nossa novela das oito por aqui! Cada dia um novo capítulo!

Como se não fosse movimento o suficiente, entre a trama das gangues e os ciclones, temos agora um Centro de Tratamento de Cólera em pleno funcionamento ao lado do hospital. A quantidade de pacientes até o momento é menor do que o esperado. A estação das chuvas está atrasada este ano e, por isso, ainda não há sinais de epidemia da doença, apenas casos pontuais. A cólera, se não tratada rapidamente, mata por desidratação. A diarreia e os vômitos são muito intensos e constantes nas vítimas dessa doença. A pessoa não tem tempo nem energia para se levantar e ir ao banheiro. Cada cama tem um buraco bem no meio, por onde o paciente faz suas necessidades, constantemente. O tratamento é basicamente a hidratação intensiva do paciente, por vias oral e venal. Normalmente, após três ou quatro dias de tratamento, ele está curado. O problema é que essa é uma doença estigmatizada no Haiti; as pessoas associam a cólera à sujeira e à miséria. Muitos pais têm vergonha de trazer suas crianças para o hospital com medo de sofrerem preconceito por parte da sua própria comunidade posteriormente. Por isso, muitas vezes o paciente chega num estado já crítico e avançado da doença, à beira da morte. Como o HIV e a cólera, muitas doenças no mundo são estigmatizadas, o que atrasa o tratamento e diminui consideravelmente as chances de recuperação do paciente. O preconceito ainda é o mais mortal dos vírus.  

Foi um mês intenso, como era de se esperar. A vida e o trabalho no Haiti são a mil por hora. Novos e intensos capítulos em breve.

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