Uma crise humanitária tão perto de casa

Uma crise humanitária tão perto de casa

Em 31 de dezembro de 2019, foram reportados à Organização Mundial da Saúde (OMS) casos de pneumonia na cidade de Wuhan, na China. Desde então, a COVID-19 se espalhou rapidamente, sendo finalmente declarada uma pandemia pela OMS em 11 de março de 2020. Entre os grupos com maior risco de evolução desfavorável ao novo coronavírus encontram-se pessoas em situações vulneráveis. O recorte para atendimento a esse grupo populacional, somado à necessidade de efetivar a equidade em saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) no momento de pandemia, justificou o direcionamento das ações.

Foi a primeira vez que trabalhei com Médicos Sem Fronteiras (MSF) tão perto de casa, depois de já ter estado em projetos de MSF em outros países. Participei do projeto COVID-19 no Rio de Janeiro. O objetivo era o atendimento contra a doença, mas claro que nos deparamos com outras questões diversas como, por exemplo, pacientes com diabetes, hipertensão, HIV e inúmeros casos de tuberculose sem tratamento ou qualquer tipo de acompanhamento. O desafio era lidar como esses problemas isolados, uma vez que estão atrelados a todo um contexto de vida, conflitos familiares e rompimento com a rede de socialização na qual o indivíduo está inserido.

Uma curiosa situação que se repetia todos os dias era que as pessoas que estão em situação de rua nos pediam constantemente para doarmos analgésicos, para eles terem esse recurso medicamentoso quando necessitassem, em alguns casos, e em outros por acreditarem nos efeitos analgésicos sobre a mente. A nossa pequena farmácia, contida exclusivamente numa caixinha, era tão almejada a ponto de precisarmos ocultá-la durante os atendimentos, pela grande demanda por este tipo de medicamento, comumente oferecidos nas farmácias, mas que, infelizmente, não é acessível a todos que precisam. Em alguns casos, tive a percepção de que as pessoas buscavam uma analgesia para a dor emocional, para duras circunstâncias de vida sobre as quais não dispunham de outras ferramentas para reduzir o sofrimento a não ser o uso de entorpecentes, lícitos e não lícitos.

Quem está em situação de vulnerabilidade, num momento de crise como esse, fica ainda mais fragilizado, porque essas pessoas necessitam de um apoio maior dos programas sociais do estado e ficou claro que esse suporte tem sido ineficiente. Aí, entra o enorme valor da ajuda de organizações humanitárias e da sociedade civil, de pessoas dispostas e intencionadas a tentar cobrir um pouco essas lacunas de vulnerabilidade. Muitas pessoas em situação de rua não conseguem acessar o sistema de saúde e ficam invisíveis e esquecidas, abandonadas a nenhuma sorte. A dificuldade de acesso aos serviços básicos de saúde faz com que não haja qualquer tipo de amparo e de ajuda médica a um contingente que realmente precisa de atenção.

Percebi, trabalhando na pandemia, que muitas pessoas em iniciativa própria ou associada a um grupo, ficaram com um olhar mais atento, e quem sabe até mesmo mais humano, em relação às mazelas geradas por esse sistema arraigado no consumismo, no lucro, no mecanicismo. Muitas pessoas se associaram a outras organizações humanitárias ou criaram pequenas atitudes na intenção de estender a mão aos que mais necessitam. Isso foi para mim extremamente inspirador e reconfortante de vivenciar. Quantas pessoas ou ONGs emergirão desta crise com a real intenção de ajudar ou acolher o outro que tem uma necessidade maior?

A questão a se ver, é se essa pandemia foi o estopim para percebermos, enquanto sociedade, algumas das consequências de uma série de decisões a atitudes diárias, tomadas a nível individual e coletivo. Porque a saúde do meio ambiente e a nossa saúde não são separáveis. E agora podemos ver (infelizmente por causa de uma doença) o quanto somos conectados uns aos outros.

 

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