Uma experiência quase no fim

Cirurgiã fala sobre experiências marcantes pouco antes de seu retorno ao Brasil

Sempre perguntei muita coisa para os profissionais locais que trabalhavam comigo no hospital. Como eram as eleições, como é a vida de quem mora no Haiti e os costumes daqui. Meu tradutor era o mais informativo de todos. Falava de legislação e perguntava muito sobre o Brasil. Disse que muitos haitianos querem vir para o Brasil, inclusive ele, eu acho.

Nos últimos dias no projeto, o sentimento é ambíguo: dever cumprido e também uma sensação de que falta fazer muito. A gente fica lembrando dos casos e dos pacientes e sempre tem alguma coisa que pensamos que poderíamos ter feito a mais ou de forma diferente. Tentei acompanhar alguns pacientes no ambulatório depois da alta, mas somente um voltou (um comerciante que levou um tiro em um assalto). Outros tinham dificuldade, pois não tinham dinheiro para transporte e locomoção – um dos pacientes que operei disse que provavelmente não conseguiria vir ao ambulatório pois não tinha dinheiro para comprar muletas para se locomover. Ele levou um tiro pois havia colocado um substituto em seu trabalho que não ficou satisfeito com salário dele, que era de cinco dólares por semana para trabalhar em construções.

O caso mais impressionante que vi não foi vascular. Foi uma menina jovem que chegou em Tabarre com mais de 80% do corpo queimado (queimaduras de segundo e terceiro graus, além de queimadura das vias aéreas). Antes de ser intubada e transferida para a unidade de queimados de MSF, ela contou que se queimou pois estava falando ao celular próximo à gasolina, e o combustível explodiu. Ela faleceu depois da transferência. Nós ouvimos essas histórias e pensamos naqueles avisos que vemos nos postos de gasolina e não damos valor.

Minha estadia aqui está chegando ao fim.  Para ocupar meu lugar, vai vir um outro cirurgião vascular do Brasil. Quero chegar em casa logo, mas, ao mesmo tempo, já estou pensando no próximo projeto.
 

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