Uma picada de cobra pode matar

Niangara, 9 de junho de 2013

Há mais ou menos um mês, recebemos um menino de nove anos no pronto-socorro que estava na escola quando foi picado por uma cobra – acontece frequentemente com crianças por aqui. Ele chegou andando e falando. Veio porque os colegas o trouxeram. Depois de 30 minutos, ele começou com hiperssalivação, uma hora depois começaram os vômitos e, menos de duas horas depois de sua admissão, ele morreu e nós ficamos lá, impotentes diante dele, porque não tínhamos o soro antiofídico em nossa farmácia.

Há quatro noites, por volta de 20h30, o médico de MSF me chamou pelo rádio me pedindo para ir encontrá-lo no pronto-socorro o mais rápido possível. Saí correndo, porque ele é completamente autônomo e nunca me chama e, quando me chamou com urgência, eu sabia que era algo realmente sério. Fui correndo e, quando cheguei lá, o encontrei do lado de fora, com uma cara péssima. Falou que Clarice, nossa querida “faz tudo”, tinha sido picada por uma cobra fazia duas horas e que ela tinha chegado bem, mas que agora estava começando a apresentar hiperssalivação e sua temperatura corporal estava diminuindo. Queria chorar com a notícia, mas entrei firme. Ela estava suando frio e tremendo, dizendo que não conseguia respirar. Fiquei desconsolada ao ver seu estado, uma pessoa superdinâmica dizendo que não queria morrer. Sabia que não tínhamos o soro, mas mesmo assim, comecei a contatar todo mundo para saber o que podíamos fazer. Descobri que no escritório do administrador do hospital tinha um soro antiofídico. Às 21h30 fomos, eu e o nosso motorista, até a casa do administrador para confirmar se realmente tínhamos o soro. Claro que o acordei – 21h30 aqui é como 23h30 no Brasil – mas, quando expliquei do que se tratava, ele me disse que não tinha certeza se ainda tinha esse soro, mas fez questão de abrir seu escritório para que procurássemos. Vasculhamos os três freezers com vacinas e não encontramos. Quando saímos desolados, o guardião de plantão informou que o último tinha sido usado no começo do ano para o supervisor da vacinação do Ministério da Saúde que foi picado por uma cobra dentro do hospital.

Enfim, telefonei para todo mundo da coordenação em vão – não me lembro se contei, mas há um mês, temos telefone em Niangara. Não tem soro antiofídico em nenhum projeto de MSF no Congo, nem na farmácia central de Kinshasa.
Apesar de em vão, foi ótimo todo esse movimento porque mantive minha mente ocupada, já que no pronto-socorro, além do soro para hidratação e dos analgésicos, não tínhamos mais nada a fazer por Clarice.

Quando voltei ao PS, era por volta de meia-noite e, graças a Deus, Clarice estava melhor. Sua temperatura estava normal, ela ainda tinha muita saliva, mas conseguiu tomar um pouco de chá. Fiquei com ela até à 1h00 da manhã. Não dormi nada a noite toda esperando que chamassem pelo rádio para anunciar o pior, o que não aconteceu.

Às 6h00 eles me chamaram, tomei um susto e, felizmente, era para informar que Clarice tinha acordado e pedido para tomar banho em casa. Claro que não permiti, mas fiquei feliz por saber que ela já queria se movimentar. Ela passou toda a sexta-feira um pouco apática e no sábado, quando cheguei ao hospital, fiquei feliz ao encontrar a nossa Clarice risonha e falante, pedindo para ir para a casa. Dei alta para ela e orientei alguns dias de repouso, que não serão respeitados, pois ela quer voltar a trabalhar, um ótimo sinal.

Agora está tudo bem, mas confesso que, em anos de medicina, não me lembro de ter passado um estresse tão grande como esse. Sei que, se algo acontecesse não seria minha culpa, porque, afinal de contas, não temos o soro antiofídico. Contudo, é horrível ver alguém querido piorando na nossa frente sem poder fazer nada. Espero que isso não se repita nunca mais e que, no próximo sábado, possamos ir ao seu “mercadinho” para dançar e brindar a sua saúde.

Boa semana!

Beijos,
Rachel

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