Uma vida em Kinshasa

Histórias de promoção de saúde em meio a uma emergência de febre amarela

Logo que soube da possibilidade de trabalhar com Médicos Sem Fronteiras (MSF) em uma emergência de febre amarela na República Democrática do Congo (RDC) como promotora de saúde, senti borboletas alçando voos em meu estômago. Voltar ao país que eu tinha visitado há dois anos e que ficou registrado em minha memória como uma das maiores aventuras que já vivi seria incrível, não fosse por um pequeno detalhe: até onde eu sabia, os congoloses ainda falavam francês. E isso, somado ao fato de que seria minha primeira emergência, me gerou alguma insegurança. Precisei, então, colocar as coisas em perspectiva: as chances de voltar a Malakal, cidade sul-sudanesa de onde eu havia sido previamente evacuada por questões de segurança, eram mínimas e eu tinha apenas alguns meses antes de ter de reassumir meu posto no departamento de Comunicação de MSF-Brasil. Considerando o pacote completo, e a opinião da minha queridíssima professora de francês, decidi aceitar o desafio. E, apesar de todas as dificuldades, as noites mal dormidas e a imensa quantidade de cigarros consumida, foi das melhores decisões que já tomei.

Cheguei a Kinshasa no dia 7 de agosto, um domingo, o que me permitiu dormir um pouco para preparar o corpo para o ritmo que uma emergência demandaria. Me enchi de alegria quando soube que teria ao menos uma semana com a Angela, promotora de saúde que estava no projeto e quem eu já conhecia – e gosto muito! – para fazer o repasse das atividades. Antes de começarmos o repasse propriamente dito, muita coisa estava em andamento e eu pude acompanhá-la para entender na prática. No projeto, trabalhamos em parceria com o Ministério da Saúde congolês e a estratégia comunitária envolveu o treinamento da mão de obra deles para fazer a sensibilização sobre a febre amarela porta-a-porta. Algo mais ou menos assim: sempre que encontrávamos um caso de febre amarela confirmado ou mesmo suspeito, mas que representasse uma ameaça considerável à comunidade, entrávamos em cena treinando 10 agentes comunitários de cada uma das áreas de saúde contempladas pela zona de saúde em questão, onde o caso fora encontrado. Depois disso, o grupo já treinado trabalharia para MSF por 10 dias consecutivos e, para garantir a qualidade do trabalho, nossos dois promotores de saúde locais, David e Roger, faziam o acompanhamento das atividades em campo. Observei a Angela dando treinamentos, por vezes, para mais de 80 pessoas, e não parava de pensar "como é que eu vou dar conta de fazer isso sozinha?". Ela fazia de uma forma tão bacana, lidava com as questões das pessoas com tanta facilidade que eu não conseguia me imaginar fazer o mesmo. Foi então que, aproveitando que ainda estávamos juntas, pedi para fazer eu mesma a primeira parte do treinamento, que consistia em introduzir o tema e apresentar MSF. Parecia factível, já que eu venho falando sobre MSF há mais de quatro anos e considerava ter memorizado as informações iniciais sobre a febre amarela. Assumi meu posto ali, na frente de cerca de 40 pessoas, e comecei a suar em bicas, sentindo minhas mãos frias à beça. Foi o caos. Contando o episódio para amigos, comparei a minha atuação à do Tarzan, pobrezinho, quando tentou se comunicar com a Jane pela primeira vez. O nervosismo roubou minha capacidade de construir frases. Para pôr um fim à minha sessão de tortura particular, pedi a Angela que assumisse dali para frente. Os congoleses, de forma geral, são bastante calorosos e compreensivos, até porque o francês também não é a primeira língua deles. E eles demonstraram tudo isso quando, terminada a apresentação, reuniram-se a minha volta para me dizer que não tinha sido assim tão ruim e que levaria algum tempo, mas eu chegaria lá. Sério? E isso aconteceria quando exatamente? Adorei toda aquela simpatia, mas eu precisava mesmo era de honestidade. Daquela que te corta a respiração. E foi exatamente isso que recebi de papa Felix, meu motorista, que se tornaria muito rapidamente meu mais fiel escudeiro e também professor de francês durante as longas horas compartilhadas no trânsito insuportável de Kinshasa. Fiquei tão deprimida que, em um dado momento, considerei desistir, dizer às pessoas que sentia muito, mas que era demais para mim. Pensei sobre o assunto algumas vezes e, felizmente, decidi pegar um pouco mais leve comigo mesma. As pessoas da equipe foram fantásticas e tive todo o apoio do mundo, tanto emocional como profissionalmente. Seleman, um dos membros da equipe de água e saneamento (whatsan, na sigla em inglês), me fez memorizar um ditado em francês que diz que, pouco a pouco, o pássaro faz seu ninho – "Petit a petit, l´oiseau fait son nit". Na esperança de que isso não fosse levar uma eternidade, comecei a viver um dia de cada vez, lembrando de respirar. E comecei a notar pequenos avanços: Housseni, um outro watsan, é de Burkina Faso e, quando nos conhecemos, eu tinha certeza que ele falava qualquer outra coisa que não francês. Um dialeto, de repente. Bondoso e paciente como poucas pessoas que conheço, ele desacelerou sua velocidade de fala para facilitar a minha vida, e quando eu pude, finalmente, entendê-lo – até ao telefone! – senti como se tivesse vencido uma batalha. A guerra ainda não estava terminada, mas ao menos eu tinha algo de bom ao que me segurar nos momentos de desespero.

Como parte das atividades de combate ao mosquito que é o vetor transmissor da febre amarela – nosso famoso Aedes aegypti – fizemos fumigações e pulverizações, e o componente de promoção de saúde é a sensibilização porta-a-porta para informar as pessoas sobre o que aconteceria no bairro. De acordo com cada contexto, trabalhamos uma estratégia para contemplar um perímetro de 100 metros ao redor do local onde foi encontrado o caso confirmado da doença para fazer a fumigação, que eu considerei ser a atividade que mais demandaria do trabalho de promoção de saúde, porque todas aquelas máquinas, as pessoas usando máscaras e toda a fumaceira podem ser bastante assustadoras. Por isso, sempre que tínhamos uma fumigação, eu chamava a nossa equipe de sensibilizadores e ia com eles a campo para organizar como faríamos o trabalho. Primeiramente, informação porta-a-porta; e, em seguida, a caminhada lado a lado com os fumigadores e suas máquinas, na tentativa de garantir que as pessoas ficassem dentro de suas casas e longe dali; tarefa incrivelmente desafiadora, uma vez que a curiosidade deles todos é praticamente incontrolável. Estar em campo é, definitivamente, a melhor parte do trabalho. Ainda que a informação seja passada pela equipe em lingala, eu pude observar de perto as reações, as inquietações, as condições de vida. E, claro, acenar para as incontáveis crianças que, maravilhadas com a cor da minha pele, gritavam desesperadamente "mundele, mundele!". Mesmo quando você acha que está sendo superdiscreto, é impossível passar despercebido.

De volta aos treinamentos, como sempre fui boa aluna, decidi que daria o meu melhor. Gravei uma das performances da Angela, anotando palavra por palavra. À noite, hora de treinar. Memorizei a coisa toda como se fosse um roteiro de teatro, mas precisava de plateia real para interagir. Felizmente, meu pai, que fala muito bem francês, topou, e nós ensaiamos juntos – eu como seminarista e ele como congolês – um dia antes de eu ter de treinar as equipes de Ngiri Ngiri. Mais segura, dei conta do recado. Até papa Felix com toda a sua sinceridade disse ter sentido orgulho de sua aluna. E, à medida que o tempo passava, eu ficava melhor. Sempre que me complicava, eu ria, começava de novo ou mesmo recorria a uma expressão em francês que eles costumam demorar uma vida para falar: "Alooooooooooooors", que é o mesmo que o nosso "então". Assim, eu conseguia tempo para organizar a frase seguinte na cabeça.  

E quando parecia que a tempestade tinha chegado ao fim, eu teria de escrever um relatório sobre uma pesquisa que fizemos para avaliar a efetividade da nossa estratégia de promoção de saúde. Usando um GPS para definir os locais aleatoriamente, conseguimos que 200 pessoas respondessem um questionário sobre as mensagens transmitidas sobre a febre amarela. Tive também de ir a campo pessoalmente para garantir que teríamos os todos os questionários respondidos a tempo. E os contextos podem ser muito desafiadores porque, quanto mais a gente adentra as comunidades, mais difícil fica o acesso dos carros. Em coisa de um dia, posso dizer tranquilamente que andamos cerca de 15 km em uma zona de saúde chamada Selembao. Mas o mais difícil mesmo seria descrever objetivos, metodologia, resultados e conclusões em francês. Mas, de novo, respirei. Um dia por vez, uma noite por vez e ajuda recebida de todos os lados. Foi o melhor relatório que já escrevi na vida? Definitivamente, não. Se eu tinha mais coisas a dizer? Com certeza! Mas, às vezes, o melhor que a gente pode fazer é o suficiente. E eu dei um jeito de ficar em paz com isso.

E então, num piscar de olhos, minhas seis semanas no projeto chegaram ao fim. Felizmente, a epidemia também acabou. Quando penso sobre esse tempo em Kinshasa, a impressão que me dá é que tudo passou voando, mas enquanto eu estava ali, vivendo a emergência, os dias eram intermináveis. Em MSF, é comum as pessoas dizerem que a gente vive uma vida inteira em alguns meses. E é bem provável que isso seja verdade. Além do cansaço, sinto que adicionei muito à minha bagagem: muitas novas experiências e, principalmente, pessoas incríveis com quem tive o prazer de dividir essa vida MSF. Falamos muito sobre o quão esquisito foi passar de completos estranhos num dia a estarmos escovando os dentes de pijama no quarto do amigo compartilhando nossas histórias mais íntimas no outro. Talvez, não seja assim para todas as pessoas ou mesmo em todos os projetos de MSF. Mas para nós foi. Ressignificamos a expressão congolesa que diz "On est là, on est ensemble" – "Estamos aqui, estamos juntos".

Agora, é tempo de recobrar as energias. Contra todas as possibilidades, estou voltando para Malakal, no Sudão do Sul, onde já tinha começado uma vida muito da interessante não tem tanto tempo assim. Vai ser só por algumas semanas, infelizmente, mas estou certa de que vou achar espaço nesse tempo para fazer com que realmente dure. 

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