Vale a pena!

A Venezuela que conheci tem luz vasta, tem um aroma especial das frutas nas árvores, das arepas, cachapas e empanadas feitas para a família cedo de manhã – vale a pena! Tem um som específico do vento que carrega o corpo, quando resolve chegar, e vale a pena se deixar levar! Tem sol forte e chuvas inundantes, duas estações. Tem música que é movimento imediato para os corpos e vale a pena botar o corpo em movimento! Junto com as suas paisagens, não sai da minha cabeça a composição do sorriso do povo, que recebe com coração, que é especialista em bons discursos, que compartilha sua cultura com altruísmo, que abre espaço para mais um. Vale a pena!

Mas logo ali, no cuidado da observação e escuta, o ressoar das lembranças vívidas do ápice da crise é dor que adoece a população, que desestrutura e enrijece. Buscar acolher esse sofrimento latente me fez fincar os pés no chão para não sair voando com o vento forte da esquina ao chegar na nossa casa, enquanto descobria a complexidade de se manter vivo na Venezuela e do que é ser venezuelano em modo de sobrevivência.

Durante oito meses de experiência no estado de Anzoátegui, entre agosto de 2022 e abril de 2023, tive a oportunidade de chegar um pouco mais perto de entender a complexidade da crise na Venezuela, com questões que dificultam e comprometem a vida cotidiana do povo venezuelano. Notei que os impactos são sentidos a nível econômico, social, físico e mental.

Para mim, o primeiro impacto foi perceber que, sempre que me apresentava como brasileira, não havia uma pessoa sequer que não relatava que tinha família morando no Brasil – filhos, tios, mães, pais, sobrinhos, amigos… –, refletindo no dia a dia o êxodo e as migrações forçadas, causados pela necessidade de buscar ajuda e alternativas de vida. Logo em seguida, me dei conta do real desmantelamento de setores essenciais como saúde, educação, economia e cultura, marcado por um sentimento de perda da esperança de dias melhores pela e para a população.

Em minha experiência no país, percebi que o capital comunitário dos venezuelanos é hoje o fator diferencial para a sobrevivência e acredito que as políticas públicas precisam dele. Justamente por ser um diferencial, é preciso identificar essa grande fortaleza: a Venezuela traz um contexto no qual acredito ser prioritário criar estratégias de ação humanitária representativas, diversificadas e que reflitam a participação ativa das comunidades mais vulneráveis na tomada de decisões, criação de atividades e comprometimento em seu processo de saúde e bem-estar.

Nesse contexto e projeto específico, o componente de Promoção de Saúde tinha a oportunidade de buscar caminhos ainda mais abertos para o engajamento comunitário, ao investir em uma estratégia que fosse além de dar informações ou de consultar as populações implicadas. Ou seja, as atividades mais focadas em educação para a saúde, com cunho informativo para prevenção de doenças e em temas relevantes de saúde, eram principalmente atividades construídas a partir da própria comunidade e pela comunidade.

Uma das maiores satisfações nessa experiencia foi ver que, depois de meses trabalhando arduamente com uma equipe altamente qualificada e motivada, os resultados nos diziam que o caminho que acreditamos seguir finalmente começavam a dar frutos. O vínculo e confiança construídos com a minha equipe facilitaram a construção dos caminhos a serem seguidos, gerados de maneira coletiva. Confiar na experiência dos meus companheiros e ver a resposta dos nossos colaboradores comunitários, incluindo os formados por MSF como promotores de saúde locais, me emocionou algumas muitas vezes. Ainda mais quando éramos nós os convidados por eles para trabalharmos juntos! Vale a pena a espera, viu?

Quanto mais nos propúnhamos a trabalhar em conjunto em iniciativas da própria comunidade, mais motivadas as pessoas se mostravam em codesenhar a nossa colaboração. Presenciei muitas pessoas criando alternativas para o bem da sua própria comunidade, de maneira construtiva, com qualidade e vontade de fazer acontecer dentro das suas possibilidades. O compromisso com a comunidade é um processo contínuo e requer paciência, tempo, escuta e muito respeito. E os resultados vistos e vivenciados na prática nos mostraram diversas vezes que a participação comunitária estava sendo gerida de maneira acolhedora e com a retomada do seu protagonismo.

Como organização de saúde, ao valorizar as nossas colaborações, investimos ativamente em uma identidade e saúde coletiva. Além disso, nessa ação que é desenvolvida, MSF é capaz de articular uma resposta multidisciplinar com primor, que abarca os diferentes setores da nossa organização para gerar atividades que cumpram o objetivo de proporcionar o acesso das pessoas a atividades comunitárias preventivas, educativas, curativas e participativas. É importante sempre refletir que a imposição de uma estratégia ou medida sem o apoio da comunidade certamente não iniciará um processo sustentável.

Uma colaboração verdadeiramente participativa pode envolver alguns riscos, mas vale a pena! Vale a pena ver as potências existentes quando se assumem protagonistas, vale a pena ver seus conhecimentos colocados em prática, a força de vontade, a generosidade, a criatividade tomando espaço. Vale a pena construir caminhos para reacender o sentimento de esperança de dias melhores. Vale a pena reencontrar em seus sorrisos a força para seguir em conjunto. Vale a pena observar, escutar, valorizar e incentivar o capital comunitário e, sem dúvidas, vale a pena ser seu colaborador nessa reconstrução do viver-saúde.

 

 

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