Valeu por você existir, amigo

Vinícius Caramuru, promotor de saúde de MSF que atuou no Sudão do Sul, conta como foi a sua primeira experiência internacional com a organização, desde o recebimento da notícia até o primeiro contato com profissionais locais.

Dezembro de 2021. Depois de um longo processo seletivo com várias etapas, recebo uma ligação que acabaria com a ansiedade sobre o meu futuro, sobre o meu sonho de encontrar novos rumos num mundo melhor. Na varanda da minha casa em Padre Miguel, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, lembro de como o sol estava brilhante e o céu estava azul nesse dia quando ouvi: “Você passou, seja bem-vindo ao grupo de profissionais internacionais móveis de MSF-Brasil”. Um peso saiu das minhas costas. Uma injeção de energia enorme e disposição tomaram conta de mim. Na verdade, talvez não tenha sido exatamente essa a frase com que recebi a notícia, não lembro exatamente porque são aqueles momentos que você sai um pouco da realidade.

Apenas uma semana depois, a primeira proposta para atuar em um projeto: Sudão do Sul. Aí vem a preparação. Corro com tarefas pessoais que não poderiam ser postergadas, envio uma série de documentos por e-mail para organização da minha ida, me despeço de familiares, realizo exames médicos, tomo vacinas, muitas vacinas, e é claro, assisto ao último ensaio da Mocidade Independente de Padre Miguel na quadra da escola no dia anterior a minha partida, para recarregar minhas energias.

No final da tarde do dia seguinte, saio de casa a caminho do táxi para o aeroporto. Minha rua não poderia estar mais pulsante, um pôr do sol, crianças brincando na rua, adultos conversando no bar, na esquina e em cadeirinhas de praia em frente às suas casas. Afinal, era dezembro, e estávamos perto do Natal. Talvez essa seja a última cena marcante que me lembro daquele antigo eu, andando em direção ao táxi, cumprimentando os vizinhos.
Minha viagem tem uma conexão em Dubai. Uma mensagem no celular me faz rir, e quem me conhece sabe que costumo dar gargalhadas bem altas. Sou repreendido pela polícia no aeroporto por “rir alto”. Me dou conta de que estou em um lugar com costumes diferentes.

24 de dezembro de 2021, dia de Natal. Enquanto muitas pessoas estão reunidas com suas famílias, observo pela janela o avião pousar na capital do Sudão do Sul, Juba. Me parece um pouco diferente das capitais que já conheci. Muitas estradas de terra e pouquíssimos prédios. A simples e pequena estrutura do principal aeroporto do Sudão do Sul me deixa estupefato.

Eu e um amigo palestino somos recebidos pelo motorista de MSF. Conheço outros profissionais internacionais na casa de MSF, recebo acolhimento e informações sobre meu projeto, e após alguns dias de preparativos, parto em direção a uma cidade ao norte do Sudão do Sul chamada Mayom.

E então voar em um pequeníssimo avião, pousar em Agok e seguir horas de carro por uma estrada de terra em um cenário que parece uma mistura de deserto e savana. Na estrada, vi mulheres carregando quantidades impressionantes de grama em suas cabeças e crianças carregando armas para proteger o gado em movimento. Chego em Mayom, e a cidade para mim parece um aglomerado de tukuls (um tipo de habitação) dispostos de maneira não organizada em ruas. Não há ruas pavimentadas. A via principal de Mayom possui algum comércio com barracas feitas de estacas de madeira e folhas de plástico. Alguns tem motos. Raros são os carros, talvez um ou dois. Chego ao acampamento de MSF formado por 7 tukuls, e sou muito bem recebido pela equipe que me apresenta o lugar e me repassa mais informações sobre o projeto.

O projeto em Mayom tinha o objetivo de responder, ao menos nessa localidade, às consequências das maiores enchentes que atingiram o Sudão do Sul em 60 anos, e que afetaram mais de 800 mil pessoas. Ao conversar com a população local, você percebe que não se trata de enchentes sazonais, geradas pela estação das chuvas que ocorre todos os anos. Dessa vez, o volume de água foi absurdamente maior e pegou a população de surpresa. Isso gerou migrações forçadas, pois vilarejos inteiros ficaram com seus tukuls debaixo d’água, plantações de alimento foram destruídas, também houve perda de muito gado e aumento de doenças transmitidas por mosquitos e pela água. Essas pessoas que tiveram de deixar suas casas por essas razões são o que os estudiosos estão chamando agora de “refugiados climáticos”.

MSF abriu clínicas móveis em vilarejos onde esses “refugiados climáticos” estavam morando temporariamente, para dar atendimento às pessoas que não tinham nenhum acesso a cuidados de saúde, distribuiu remédios, itens de higiene, limpeza e armazenamento de água, além de consertar tanques de armazenamento de água potável.
Cada clínica móvel tinha um promotor de saúde, que era do próprio vilarejo. Compartilhava meus conhecimentos com as pessoas, e elas explicavam na língua local sobre os serviços de saúde de MSF: como se prevenir de doenças que estavam afetando a comunidade, quando procurar ajuda médica etc. O objetivo também era tentar fazer com que as pessoas, por decisão própria, mudassem práticas de higiene, preparo, armazenamento, e ingestão de alimentos, saúde respiratória etc. Diminuindo, assim, suas chances de contrair doenças.

Zacaria era um desses promotores de saúde. O sonho dele é ser médico e levar saúde para sua comunidade. Depois de muita luta juntando dinheiro, ele se mudou para o Quênia, para realizar o seu sonho de estudar medicina. Diferente da minha história com meu sonho, ele foi obrigado a interromper o dele. Teve que voltar para ajudar a família quando a guerra estourou no Sudão do Sul. Anos se passaram e Zacaria não sabe quando vai retomar os estudos novamente, mas ele diz com firmeza que vai voltar e que não parou de estudar.

Obviamente, ele tinha muito mais conhecimentos sobre as doenças de sua comunidade do que eu, elaboramos atividades juntos e eu aprendi muito com ele. Acabei criando uma conexão forte com Zacaria. Infelizmente, eu contraí COVID-19, tendo que ficar isolado 12 dias no meu tukul, com internet disponível somente 2 horas por dia. Tive muito tempo para pensar, inclusive na história de Zacaria. O cara era uma inspiração. No mesmo dia em que saí do isolamento, tive que viajar, pois minha posição era mais urgente em um outro projeto, uma vacinação de Hepatite E no campo de deslocados internos de Bentiu, não tão longe de Mayom. Por isso, tive de me despedir de Zacaria pelo telefone. Zacaria ficou lá, no vilarejo de Kech, distante para nós, mas no centro do seu mundo. Na última ligação telefônica ele me disse: “Eu vou me lembrar de você, então também lembre de mim”. E eu me lembrarei.

 

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