“Achei que só veria adultos feridos de guerra, mas as crianças também são atingidas… por minas”

Médica conta a experiência de trabalhar no meio dos conflitos da Líbia

A coordenadora da unidade médica de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, Carolina Batista, trabalhou 28 dias em hospitais de Misrata, região oeste da Líbia, no atendimento de feridos de guerra e na capacitação de profissionais. Na volta ao Brasil – ela chegou no dia 21 de junho –, Carolina falou de suas experiência. Muitas vezes ela trabalhou ao som de bombas explodindo. Isso aconteceu tantas vezes que ela chegou a esquecer do que se tratava. “Chega uma hora que a gente já não ouve mais”, conta ela.

Os desafios começaram antes mesmo de Carolina chegar à Líbia. Como o espaço aéreo está fechado, Carolina teve que ir para Malta, uma ilha no Mediterrâneo, e de lá seguir, numa jornada de 30 horas, no barco que todas as semanas leva e traz os profissionais de Médicos Sem Fronteiras que estão trabalhando na Líbia. Na entrevista abaixo Carolina fala da sua experiência. 

Como está a estrutura de saúde líbia?
Antes da guerra, a maioria absoluta dos enfermeiros, fisioterapeutas, e todo o pessoal não médico, era estrangeiro: das Filipinas, Bangladesh, Índia e outros países. Então, com o início dos conflitos, o que aconteceu é que essas pessoas fugiram, foram embora. Hoje o país tem uma falta gigantesca desse grupo de profissionais.  Ao mesmo tempo, conta com milhares de médicos com uma formação super boa e altíssima qualificação técnica. Muitos são formados na Inglaterra ou fizeram residência ou doutorado lá. Para MSF é diferente chegar num lugar como esse porque nas situações onde trabalhamos, principalmente na África, acontece justamente o contrário. A gente teve que se reinventar. Tivemos que nos perguntar que papel teríamos num contexto tão peculiar como esse.

E o que MSF decidiu?
Depois que saímos do pico da emergência, de atender os feridos de guerra, tivemos que pensar de que maneira poderíamos ajudar, e não podíamos simplesmente lotar um barco de enfermeiros e levar para lá. Então, junto com os profissionais locais, criamos uma estratégia em que MSF assumiria o papel de orientar o que fazer dentro de um cenário caótico. O nosso trabalho foi de capacitação das pessoas locais, que já eram voluntárias no hospital, para que elas pudessem passar a entender a esta nova demanda.

Essas pessoas faziam o que antes?
A maioria era estudante de medicina e alguns, estudantes de enfermagem, farmácia. Tínhamos pessoas super capacitadas para realizar atividades médicas especializadas, mas que não tinham experiência com o trabalho mais básico.

Você quer dizer o médico fazendo o trabalho de um técnico de enfermagem, por exemplo?
Isso mesmo. O que é exatamente o oposto do que estamos acostumados. Nos nossos projetos, em geral, treinamos pessoas da comunidade para fazerem tarefas de enfermeiros, e enfermeiros para fazerem algumas atividades normalmente desempenhadas por médicos. Na Líbia fizemos o contrário.

Primeiro categorizamos os estudantes de acordo com o ano em que estavam na faculdade e, junto com os médicos locais, criamos um currículo de treinamento. O resultado foi ótimo. Eles têm espírito de solidariedade imenso. Alguns voluntários estão morando no hospital desde que a guerra começou. Quando nós chegamos a coisa estava muito solta. Não tinha uma linha condutora do que os voluntários deveriam fazer. MSF ajudou muito nisso.

E foi super legal. No final eles anunciavam no rádio, na universidade e treinamos desde médicos até estudantes de segundo grau, que ajudavam a receber os pacientes. Fizemos diferentes tipos de treinamento, começando com os mais simples, ensinando, por exemplo, como imobilizar uma pessoa com fratura. No período em que eu estive lá mais de cem pessoas foram treinadas. Também tinha uma parte que era mais mão na massa, com emergência.

Estamos atuamos em três hospitais: Ras Toubah Medical Center, Ras Toubah Hospital e Al Noor Hospital.  Ras Toubah Hospital , por exemplo, era uma clínica para tratamento de infertilidade  que com a guerra virou o maior centro de obstetrícia e pediatria de Misrata. Lá, além de treinar os voluntários, MSF está fazendo a parte clínica, com enfermeiros especializados em cirurgia , enfermeiras obstetras. Também estamos padronizando os protocolos, outra especialidade de MSF que teve que ser adaptada à realidade local. Em geral, nos países onde atuamos, não existem protocolos, nós é que propomos e eles são bem básicos. Na Líbia os protocolos já existem e em moldes bem avançados, o que estamos fazendo lá é homogeneizar os padrões que eles já têm.

Você chegou a ver alguma explosão de bomba? Teve medo?
Vi várias bombas explodindo. Na hora eu não ficava com medo, mas depois eu pensava essa foi perto. A casa onde a gente estava era muito perto do “front line”, o tempo inteiro era bum! Bum! Bum! Mas tem uma hora que a gente já não ouve mais.  Aconteceu duas vezes de eu estar no carro, indo para um dos hospitais, e ver a bomba caindo a poucos metros.
A situação de mais medo foi no hospital Al Noor. Parte da equipe estava dando treinamento e outra parte estava atendendo uma criança que tinha perdido um braço numa explosão de mina quando começamos a ouvir as bombas. E sempre que as explosões aconteciam o nosso termômetro eram as pessoas locais, quando a gente via que elas estavam tranquilas, também ficávamos tranquilos. Mas nesse dia, teve uma hora que a coisa ficou mais feia e até os pacientes começaram a gritar. Fiquei com muito medo.

Em cada hospital que a gente trabalhava e na casa onde dormíamos,  tinha uma área de proteção, um lugar mais seguro para onde íamos quando tinha explosão. Nesse hospital esse lugar era uma sala sem janela para a rua, então não era nada super seguro, mas fomos para lá. Depois que as explosões diminuíram pegamos o carro e fomos embora. Acabou tudo bem, mas deu medo.

O que foi mais marcante nessa experiência?
Profissionalmente acho que foi quebrar certas pré-concepções, chegar num lugar e ver que tem uma estrutura boa e perceber que mesmo dentro desse contexto tem um espaço imenso para atuar. Também foi muito gratificante ouvir das pessoas com quem a gente trabalhou, de cada médico, de cada voluntário: “obrigada por vocês estarem aqui, o fato de vocês estarem aqui significa que o mundo não esqueceu da gente”.

Um momento muito marcante foi em um hospital que eu visitei. Tinha uma enfermaria infantil, encontrei criança sem braço, sem olho, sem perna… eu não estava preparada para aquilo. Foi o dia mais duro para mim, eu não estava preparada. Achei que só veria adultos feridos de guerra, mas as crianças também são atingidas… por minas.

Nessa sala tinha um menininho com a mãe, super bonitos os dois. Eles moravam na Inglaterra e quando a guerra começou voltaram para a Líbia, o que é uma coisa super peculiar também. Em situações de conflitos geralmente as pessoas querem fugir, mas de lá quem fugiu era estrangeiro. Os líbios não quiseram fugir, muito pelo contrário. Teve um grande movimento de líbios que estavam morando em outros países e voltaram para participar desse momento. Com essa mulher foi isso, ela fazia PhD na Inglaterra e voltou com o marido para participar da revolução e o filho de seis anos perdeu a perna. Ela pegou a minha mão e disse assim: “por favor, não deixe o mundo esquecer do que está acontecendo”.

O parto que eu fiz foi muito marcante também. Eu estava chegando ao hospital e uma mulher estava entrando em trabalho de parto e eu pedi para fazer. Minha irmã está grávida, vai ser menino e o parto que eu fiz foi de um menininho, foi super emocionante. Me fez lembrar quem eu era e que a vida existe apesar de tudo.

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