América Latina: a diferença nossa de cada dia

América Latina: a diferença nossa de cada dia

É recorrente a afirmação de que a sociedade civil organizada na América Latina é forte e vibrante e atuar nessa parte do mundo implica em reconhecer e se articular com atores fora do aparato estatal e do mercado. A frase seguinte a essa afirmação, especialmente quando falada por organizações humanitárias, como Médicos Sem Fronteiras, é  – “Mas precisamos preservar a nossa independência”. Onde e quem define então os limites aceitáveis do relacionamento saudável entre organizações humanitárias internacionais e a sociedade civil organizada local e como evitar a confusão de papéis? Obviamente essa questão não é uma exclusividade da América Latina e outra pergunta pode emergir imediatamente: se essa questão se dá em outras partes do globo, porque refletir sobre ela particularmente na América Latina? É inegável que cada país/região possui características próprias sobre a atuação de sua sociedade e a relevância de sua incidência para mudanças políticas e sociais. Pode-se afirmar que entre as características marcantes dessa região temos o trabalho em rede, as articulações coletivas e, em alguns países, como o Brasil, o chamado “controle social” (que tem conotação absolutamente oposta da compreendida em outros contextos, onde significa o controle do Estado sobre a sociedade). Assim, em regra, quem navega sozinho na América Latina navega mal. Nesse continente, a articulação, a busca pela integração regional e a construção de alianças estão no DNA da conformação das agendas políticas se olhamos a partir de grupos sociais organizados. Esse elemento, longe do que parece, não é um tema menor e abstrato, mas transforma-se num elemento chave para ações bastante concretas como negociação de acesso, ampliação da aceitação por comunidades, obtenção de informação de qualidade e influência sobre políticas nacionais e regionais.

As teorias sobre sociedade civil organizada trataram de investigar suas práticas com base na visão sobre autonomia, que, nesse caso, foi entendida em um sentido amplo como autonomia em relação do Estado e ao mercado. As formas de organização da sociedade civil cresceram e tomaram corpo no debate internacional, mas também envolveu fortes elementos locais, que é o que foi capaz de matizar as atuações de movimentos populares e ONGs com contornos próprios, distintos de outras partes do mundo. Na América Latina, a partir dos anos 1960, a dimensão da busca por autonomia e resistência ao autoritarismo influenciou um conjunto de movimentos, entre os quais cabe destacar o associativismo comunitário, os movimentos de saúde pública, os de reforma urbana e quase todos os movimentos com forte presença católica – que transcenderam o âmbito da caridade para mergulhar nos debates e pressões por justiça social e democratização.

Uma outra fase emergiu no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 com o fim dos ciclos mais longos das ditaduras militares. Os atores da sociedade civil superaram uma fase de demarcação de espaço com o Estado e começaram a interagir em conselhos de políticas, bem como em projetos específicos que envolviam a implementação de políticas públicas. Tudo isso no marco das novas Constituições que foram promulgadas a partir das recentes conquistas democráticas. Ampliou-se a percepção de que os mais pobres e vulneráveis, bem como outras minorias sociais, deveriam ampliar a pressão e transformarem-se em atores decisivos para alterações profundas nas relações de poder e que poderiam fazer com que modificassem sua própria condição de excluídos e vulneráveis. No campo e na cidade organizou-se uma resistência singular, com vocabulários e conceitos particulares, bem como com disputas próprias de poder. Tornou-se corrente a frase “nada sobre nós sem nós” por parte de alguns desses grupos, significando a afirmação de uma participação plena em tudo que dissesse respeito à sua própria existência. Além disso, a abertura política deu espaço para a luta por afirmação e positivação de direitos e garantias fundamentais, rompendo com uma lógica assistencial. Claramente essa pressão se dava em grande parte fora dos partidos políticos e também de sindicatos, embora ambas formas de atuação estivessem em alguma medida mescladas em alguns movimentos.

Assim, ONGs e coletivos com pautas específicas (ecologistas, mulheres, etc), associações de base e movimentos sociais perceberam cada vez mais a necessidade de se articular com outros grupos com a mesma identidade social ou política a fim de ganhar visibilidade, potencializar seu impacto na esfera pública e lutar por pautas no campo da cidadania. Nesse processo de articulação ampliou-se a legitimidade das esferas de mediação (como fóruns e redes) capazes de aglutinar forças que apontavam “na mesma direção”, mas que continham elas mesmas agendas e formas de pensar muito diversas. Não raro organizações e movimentos de relacionamento difícil conseguiam construir uma agenda comum no seio de uma rede ou fórum plural, sendo este o único espaço de consenso. Essa lógica expandiu-se das fronteiras nacionais e tomou a região com uma rica e simbólica troca de experiências entre organizações e movimentos em múltiplos temas.

Ampliar o escopo de atuação em advocacy e comunicação nos mais amplos níveis nesses países tem também a ver com a capacidade de compreender que parte da sociedade civil – no caso a que se encontra organizada a ponto de influenciar políticas nacionais e internacionais exercendo pressão sobre seus governos –  trabalha cotidianamente a partir dessa lógica. Nesse ambiente a coerente busca de manutenção da independência do mandato humanitário não pode resvalar para o isolacionismo, o que facilmente pode sugerir arrogância ou descaso.

É preciso que se diga com todas as letras que o mandato das organizações humanitárias (e seus princípios) não são de todo claro em contextos como o latino-americano. As organizações internacionais que aqui atuam mesclam-se com os grupos nacionais e regionais e, mesmo com práticas estabelecidas em seus países, buscam preservar e interagir com essa forma de incidir – ou seja, em redes, dando voz a grupos de atingidos diretos e a partir de uma pauta ampla de reivindicação de direitos. Inclui-se nessa lógica as organizações com mandatos híbridos (por exemplo atuando no campo humanitário e no campo do desenvolvimento), deixando mais visível sua face ligada ao desenvolvimento – utilizando, portanto, uma narrativa mais palatável e compreensível no contexto local. No entanto, também é importante ressaltar que mesmo com a busca das organizações não-governamentais internacionais em respeitar o modus operandi das organizações da região, a relação entre elas não está livre de conflitos e, em certos casos, até de uma visível e incômoda subordinação. Não há dúvida de que a chamada sociedade civil global reproduz as relações norte-sul e é preciso cuidado em relação a isso.

Respeitando os nossos limites, avançar para uma profunda leitura da forma como a sociedade civil organizada se move na região pode reforçar dois eixos principais: 1) ampliar as chances de compreensão da sociedade sobre o mandato de organizações humanitárias; e com isso 2) estabelecer uma ponte capaz de mitigar as tensões que certamente emergirão do desconhecimento sobre o mundo humanitário, especialmente por organizações de direitos humanos. Esse último ponto é especialmente delicado e merece atenção. Durante décadas a sociedade civil organizada forjou sua própria autonomia baseada na defesa de direitos e mudanças estruturais na sociedade, incluindo aí a luta por rupturas de fundo, questionando o status quo vigente. Nesse ambiente a pauta da ajuda é lida apressadamente como sinônimo de dependência e submissão. É, no entanto, possível deixar clara a urgência em realizar ajuda humanitária imparcial e independente e baseada em necessidades sem que isso seja lido como negação ou como sendo uma pauta adversária das mudanças estruturais. O reforço da diferença entre mandatos do mundo humanitário e de direitos humanos pode potencializar nossa capacidade de vocalizar e disputar a atenção da sociedade e dos tomadores de decisão sobre os impactos da confusão entre esses dois papéis. É preciso encontrar formas de deixar claro que a ampliação do escopo da ajuda humanitária para abraçar pautas estruturais traz perigos e aprofunda as necessidades em muitos contextos.
Um olhar detido de Médicos Sem Fronteiras para as dinâmicas da região não será em si uma novidade. Há anos que navegamos em um ou outro tema de forma mais próxima e articulada. A luta contra o HIV e pela ampliação do acesso a medicamentos é um exemplo que pode ser citado. As redes da sociedade civil brasileiras e MSF, por exemplo, há anos se retroalimentam e se apoiam em pautas múltiplas, especialmente na arena internacional. Esse exemplo prova ser possível a articulação e a sinergia, mas precisa deixar de ser uma exceção, transbordando para outras agendas também relevantes como outros temas de saúde pública, nutrição, violência urbana etc.

Estudos sobre organizações da sociedade civil e seu impacto vêm demonstrando que as suas contribuições para a democracia não se manifestam apenas em sua capacidade de influenciar políticas e legislações. Se a medida do sucesso somente se desse com base nesse critério é provável que seu impacto seria julgado mínimo. Mas buscou-se demonstrar que a contribuição das organizações da sociedade civil para a democracia se estende à sua capacidade de fomentar a participação e de opinar sobre seus próprios destinos, de construir capacidade de liderança e de nutrir valores de tolerância e de solidariedade. Olhando por esse prisma, que laço pode ser mais forte entre agendas de direitos e agendas humanitárias do que os descritos acima: desejo de incluir os mais vulneráveis, de se incomodar com o sofrimento do outro, de fomentar a capacidade de ter empatia, de ser solidário, de se importar? Se essa é a base de todas as lutas e agendas, o que falta é aprofundar a escuta e a capacidade de compreender o que é diferente de nós, deixando claro que as diferenças são bem-vindas e que ela nos acrescenta ao invés de nos dividir.
 

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