Apoio psicológico na Síria

Após três meses atendendo pacientes e profissionais, psicóloga da MSF compartilha realidade que observou em campo

A Síria vive momentos de extrema violência. Pacientes, famílias, profissionais de saúde, ninguém é poupado e qualquer um pode vir a precisar de apoio psicológico. Charlotte, psicóloga da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), passou três meses no país ouvindo o que os pacientes tinham a dizer. No texto abaixo, ela compartilha alguns dos momentos vividos em um dos projetos de MSF no norte da Síria.
    
“No hospital na região de Aleppo, eu não atendi apenas pacientes; recebi seus amigos e familiares também, porque eles estavam precisando tanto de suporte psicológico quanto os próprios pacientes. O que essas pessoas estão enfrentando faz delas vulneráveis e temerosas. Em condição de estresse agudo, e depositando bastante esperança no tratamento, elas buscam um milagre e suas expectativas nada realistas geralmente causam frustração. Entre os pacientes e sua rede de suporte, atendi muitas pessoas muito ansiosas e estressadas. Os provedores de cuidados internacionais e sírios estão completamente sobrecarregados devido à quantidade de pedidos por ajuda. As pessoas não têm onde morar, nada para comer, não têm dinheiro para pagar para ir até um hospital receber tratamento e, por vezes, não têm mais familiares para lhes oferecer apoio e nem mesmo escola para seus filhos. Elas não vêm futuro e são tomados pela ansiedade. Essas pessoas não estão apenas preocupadas com elas mesmas, mas, também, com o que o futuro reserva para a Síria.

O estresse de pacientes que foram feridos e encontram-se fisicamente debilitados é aparente. Aceitar essa condição é uma batalha para as pessoas que ficaram paralisadas, desfiguradas ou mesmo tiveram membros de seu corpo amputados devido aos ferimentos ou queimaduras sofridas durante uma explosão. A desfiguração é particularmente angustiante porque as meninas desfiguradas que já tem idade para casar não conseguirão encontrar maridos.
    
D., de onze anos, sofreu diversas queimaduras em seu rosto e na parte superior de seu corpo. Apenas suas pernas ficaram intactas. Quando ela chegou ao hospital, os ferimentos já estavam ‘velhos’. Ela não pôde buscar tratamento antes porque os hospitais apenas cuidavam de feridos de guerra e a maioria das outras instalações de saúde ou haviam sido destruídas ou sofriam com a falta de medicamentos e profissionais. As queimaduras de D. foram causadas pela explosão de um combustível utilizado para cozinhar, ocorrência comum, já que a qualidade dos combustíveis é ruim e eles frequentemente explodem. Os efeitos das queimaduras estavam terríveis e a menina não conseguia fechar seu olho direito nem sua boca. Sua cabeça parecia pensa para baixo, quase colada em seu pescoço, porque, durante a cicatrização da ferida, a pele retraiu. Ela precisava de uma cirurgia. O cirurgião fez uma incisão em seu pescoço para que ela pudesse manter a cabeça erguida, para, então, fazer curativos e enxertos de pele. Os demais pacientes e familiares nos perguntavam frequentemente: ‘O rosto dela voltará a ser normal? Ela vai precisar casar um dia’. Mas, infelizmente, a garotinha vai ficar desfigurada para a vida.

A angústia visível é consequência dos sentimentos de insegurança das pessoas, de suas incertezas sobre o futuro. E ainda por cima, há o medo dos bombardeios. As pessoas têm medo de circular por estradas pelas quais sabem que serão obrigadas a passar por pontos de controle com homens armados, o que torna ainda mais difícil a locomoção de um lugar para o outro. Foram inúmeras as vezes em que escutei homens e mulheres dizendo: ‘Se não posso cultivar minha terra, se não posso vender meus produtos, o que vai ser de mim?’.

E, além desse estresse, surge uma geração de pessoas fisicamente debilitadas, que carregam consigo seus próprios problemas referentes à mobilidade, integração social, e por aí vai.

Profissionais sírios e equipes internacionais de MSF também precisam de suporte
Eu trabalhei com uma psicóloga síria que atendia todos os pacientes do hospital e era responsável por seus tratamentos. Ela começou duas semanas antes de mim – comecei em abril. Ela é aquela pessoa que tem de estar ali quando um paciente precisa escutar a frase ‘sua mulher não vai sobreviver’. O suporte que ela oferece é de valor imensurável.

Ela se dá bem com a equipe síria de MSF, que também recorre ao seu apoio porque enfrentam os mesmos problemas que seus pacientes e precisam de ajuda. Morte, perda e sofrimento, além de feridas físicas e psicológicas, estão presentes em seus cotidianos no hospital tanto quanto na vida dos pacientes. E, então, eles vão para suas casas, famílias e comunidades e enfrentam mortes, perdas e sofrimento outra vez. Os casos que eles atendem tantas vezes refletem seu próprio sofrimento, e é complicado para eles manter a perspectiva de que tanto precisam.

Eu estruturei grupos de discussão, principalmente para os nossos intérpretes. Eles têm a árdua tarefa de escutar as histórias traumáticas contadas pelos pacientes durante o dia todo e depois têm de repeti-las quando as traduzem para nós, a equipe internacional. Eles vêem e ouvem muito. Eles têm de estar no centro cirúrgico, com os pacientes, em todo o lugar. Eles não são treinados para isso e são duramente afetados. Eu sou treinada, é meu trabalho, e ainda sim sou afetada pelas histórias. Imagine como é para eles. Não é a mesma coisa para os médicos e enfermeiros, que têm mecanismos para lidar com essas situações. Mas pode ser complicado para eles também, principalmente quando crianças estão envolvidas, o que causa um enorme impacto emocional com o qual é difícil lidar.”
 

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