Após visita a Camarões, médica explica a úlcera de Buruli

Carolina Batista avaliou o programa de MSF no país para tratar a doença e conta que a imagem de pessoas lesionadas ainda a entristece e choca

Especializada em Medicina Tropical e mestre em Saúde Pública Internacional, Carolina Batista faz parte do time de Médicos Sem Fronteiras desde 2006. Por onde passa – e a rotina profissional de MSF demanda que sejam, de fato, muitos lugares – contagia com seu entusiasmo, mesmo diante de cenários nem sempre inspiradores. Carolina está responsável por conduzir avaliações dos programas de MSF voltados para o tratamento de doenças negligenciadas. Sua primeira parada foi Camarões, onde avaliou o programa de tratamento da úlcera de Buruli. Nesta entrevista, Carolina responde às perguntas enviadas a ela pelas redes sociais relacionadas à sua recente experiência e conta também sobre as escolhas que a levaram a trabalhar com Médicos Sem Fronteiras.
 
O que é e quais são os sintomas da doença?

Carolina Batista – A úlcera de Buruli é uma doença causada por uma bactéria da mesma família da que causa a tuberculose e a hanseníase. Os primeiros sintomas são lesões na pele, que começam como nódulos, que, se não forem tratados, podem virar feridas grandes e abertas pelo corpo. As feridas atacam principalmente as articulações, podendo prejudicar também os ossos, levando à incapacidade motora e, por vezes, à amputação de membros inteiros.
 
A doença é contagiosa? É possível preveni-la?

CB – Ainda se sabe muito pouco sobre a úlcera de Buruli, mas não há evidência de contágio de pessoa para pessoa. Sem saber como se dá a transmissão da doença, não conhecemos métodos para preveni-la. As recomendações que fazemos às pessoas, principalmente profissionais de saúde e familiares que têm contato com as feridas de pacientes, são cuidados genéricos que se deve ter com qualquer lesão: utilizar sempre luvas e manter curativos e feridas higienizados.
 
A úlcera de Buruli tem cura?
CB – A doença responde bem a antibióticos e, portanto, tem cura. Mas o tratamento não é nada fácil: durante dois meses, o paciente tem de ficar internado para receber medicamentos tanto por via oral como por injeção. O processo de reabilitação, envolvendo fisioterapia, enxertos, curativos diários ou outros procedimentos cirúrgicos dura mais tempo. Já as lesões, dependendo da gravidade e do estágio em que se encontram, podem deixar sequelas, devido ao comprometimento de movimentos ou mesmo à necessidade de amputação. Daí a importância de o tratamento ser iniciado o quanto antes.
 
Quais as dificuldades de tratamento nessa região?
CB – A doença acomete principalmente comunidades rurais, que moram em locais próximos a rios, como o Vale do Nyong. Quando diagnosticada a doença, há uma grande dificuldade de acesso a cuidados médicos. Durante minha visita, tivemos de andar por três horas em meio a uma selva para tratar uma criança que estava com as feridas, porque a mãe não tinha condições de ir até o hospital. Essa dificuldade de acesso faz com que o tratamento seja postergado até o limite da dor, quando a lesão já está avançada. Mas há questões anteriores ao diagnóstico. Boa parte das comunidades entende a doença como consequência de bruxaria, de praga. A primeira reação é esconder o doente, ou mesmo excluí-lo do convívio social, para que a família não seja mal vista. E a assistência médica fica, na maioria dos casos, nas mãos dos curandeiros locais.
 
Há dados epidemiológicos da doença em Camarões?

CB – Este é justamente um dos grandes desafios: ter dados numéricos sobre uma doença “invisível”. Segundo um representante do programa nacional que esteve conosco, foi feito um mapa da doença no qual algumas características foram identificadas: a prevalência da doença em regiões próximas de rios, a ocorrência em ambos os sexos e em pessoas de todas as idades, embora 60% dos casos atendidos sejam de crianças com menos de 15 anos, e a incidência de 90% das lesões em membros, sendo 60% delas nos inferiores.
 
Além de Camarões, a doença ocorre em outros países?
CB – Já há registros da doença em mais de 30 países em diferentes continentes, mas o local de importante prevalência é o oeste da África.
 
Como essa experiência afetou sua vida profissional e pessoal?
CB – Sendo médica e, principalmente, de MSF, trabalho constantemente com doenças negligenciadas, as tais doenças “invisíveis” que são algozes de populações de baixa renda. Mas estar ali, presenciando os danos causados pela doença ainda me choca, gerando uma enorme sensação de impotência. Como é possível que não haja interesse e esforços em destinar recursos para o desenvolvimento de tratamentos simples, diagnósticos rápidos, quando tanto se faz em termos de avanços na medicina? Mas, ao mesmo tempo em que a situação causa revolta, ela reafirma meus ideias e a importância do trabalho de MSF. Voltei, como a médica e a pessoa Carolina, querendo dar voz a essa doença.
 
Como foi sua decisão de entrar para MSF e qual foi o impacto desse rumo na sua vida?
CB – Sempre soube que queria trabalhar em Médicos Sem Fronteiras. Quando eu tinha uns 18 anos, guardei uma matéria sobre a organização que saiu numa revista e ficava pensando: “é isso que eu quero ser”. Fui adaptando minha formação para corresponder às necessidades de MSF e entrei de cabeça. Pessoalmente, a escolha é um tanto solitária, porque demanda viajar muito. Mas, ao mesmo tempo, a intensidade das experiências compartilhadas em situações extremas nos faz estabelecer vínculos muito fortes com as pessoas. É como se hoje eu tivesse uma enorme família sem fronteiras. E com os nossos, a gente sempre dá um jeito de se comunicar, de manter os laços. A era da internet e das redes sociais está aí para isso, não é?
 
Em breve, Carolina vai ter mais histórias para contar: para avaliar os programas de tratamento de calazar e da doença do sono, ela vai viajar para o Sudão e para a República Democrática do Congo ainda este ano.

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