Bangladesh: refugiados rohingyas são assombrados pelo passado e temem pelo futuro

Mais de 900 mil refugiados rohingyas vivem em condições precárias em campos em Cox’s Bazar

Bangladesh: refugiados rohingyas são assombrados pelo passado e temem pelo futuro

Conhecemos Rashida pela primeira vez em 2017, logo depois que ela chegou a Bangladesh. Dois anos depois, nos encontramos novamente.

Em Mianmar, antes de fugir do país, Rashida foi estuprada e testemunhou o assassinato brutal de seu filho bebê. Quando ela atravessou a fronteira para Bangladesh e chegou ao distrito de Cox’s Bazar, estava no fundo do poço. Tudo o que ela podia fazer era esperar que o pesadelo que estava vivendo chegasse ao fim um dia.

Apesar de seus esforços, os flashbacks de Rashida, agravados pelas condições sombrias do campo, estão dificultando sua recuperação. Como muitos outros refugiados rohingyas, ela se sente paralisada e desanimada, ao mesmo tempo em que anseia por um retorno a algum tipo de vida normal.

“Todos os dias eu penso, como vamos sobreviver aqui e até quando? Quando vou morar em minha própria casa de novo?”, diz a jovem de 27 anos, sentada no chão de cimento de sua casa improvisada, uma cabana de bambu coberta com lonas de plástico.

MSF conheceu Rashida em 2017. Na época, uma ferida de faca no pescoço, infligida quando ela foi atacada no vilarejo de Tula Toli, ainda era muito visível. Ela não conseguiu conter as lágrimas ao contar como, em 25 e 26 de agosto daquele ano, membros das forças de segurança de Mianmar atacaram seu vilarejo e esmagaram o crânio de seu filho de um mês, bem diante de seus olhos. Ela também contou como ficou parada, fingindo estar morta, depois que seus agressores a estupraram e cortaram seu corpo com facas. Ao seu redor jaziam os corpos de outros moradores rohingyas mortos naquele dia.

Quando Rashida chegou a Cox’s Bazar, ela estava profundamente assustada, física e emocionalmente, pelo ataque impiedoso. Mas ela também estava aliviada por estar fora de perigo e por se encontrar com o marido, que havia viajado para o acampamento separadamente.

“Ainda me lembro do sentimento quando encontrei [meu marido] Mohammad”, diz Rashida. “Eu senti como se estivesse voltando à vida.” Hoje, a principal fonte de felicidade de Rashida é sua filha de 10 meses, Harisah, que nasceu no campo. “Quero dar a ela uma vida melhor”, diz. “Ela traz alegria ao meu coração.”

Rashida construiu um berço bonito e colorido para Harisah, pendurado no teto. Mas as condições de vida no campo são ruins e as doenças são generalizadas. É difícil criar uma criança ali em segurança. No dia em que nos encontramos, Harisah e seu pai Mohammad tiveram febre.

Rashida diz que está otimista de que Harisah “terá uma vida melhor” do que a dela. “Vou tentar criá-la para ser uma mulher forte e educada”, diz ela. “Não sei onde vou fazer isso, se aqui ou em Mianmar, mas quero que ela seja alguma coisa.”

As lembranças do que aconteceu com Rashida em Mianmar não desapareceram com o tempo. “Todos os dias lembro o que eles fizeram comigo em Mianmar, todos os detalhes horríveis”, diz ela.

Rashida diz que sente que está vivendo em um mundo de contradições. “Não sei se devo ficar feliz por estar em segurança aqui ou aborrecida porque sou apenas uma hóspede”, diz ela. “Quero voltar [para Mianmar] para poder cuidar do meu destino, mas também sei que, se voltar hoje, serei morta. Essa é a luta mental pela qual passo todos os dias. ”

Outros residentes do campo, como Abdul Salam, de 17 anos de idade, acham que as probabilidades estão contra os residentes. Ele não sabe ler ou escrever e a única educação que já teve foi de uma madraça, uma escola do Alcorão. Ele perdeu toda a família – seus pais, três irmãs e dois irmãos – em um massacre brutal em seu vilarejo de Saa Pran, no distrito de Rosidong, em Mianmar.

“Tínhamos uma fazenda enorme e uma casa em Mianmar. Quero recuperá-las”, diz Abdul Salam. “Eu sei que meus pais e todas as nossas vacas foram mortas, mas aqui estou paralisado. Eu moro sozinho, como sozinho, e isso me deixa muito triste. ”

Abdul Salam sabe que precisa encontrar trabalho para mudar sua situação. “Mas aqui [no campo] não há oportunidades”, diz ele. “Tentei abrir uma pequena loja, mas ela não sobreviveu ao mês do Ramadã [em junho de 2019]. Tivemos fortes chuvas naquele mês, a loja foi destruída e eu perdi a maioria dos meus pertences. ”

Por um tempo, Abdul Salam sonhava em retornar ao seu vilarejo para trabalhar na fazenda de seu pai. Mas quando ele pensa nos assassinatos que testemunhou há apenas dois anos, ele percebe que é apenas um sonho. “Não posso deixar o acampamento e suponho que não posso reclamar, porque não é o meu país… Se Bangladesh não tivesse nos recebido, estaríamos todos mortos.”

Abdallah, 24 anos, diz que estava otimista quando chegou de Mianmar no final de 2017, mas agora sente que não tem futuro. Ele terminou a escola em Mianmar em 2012, mas não pôde ingressar na universidade por causa da interdição para estudantes rohingyas, imposta pelas autoridades. Uma vez em Bangladesh, ele tentou seguir o ensino superior, mas achou “impossível”.

“Sinto que perdi meu futuro, que não terei nenhuma habilidade”, diz Abdallah. “Quero trabalhar e servir minha comunidade, mas ninguém está me permitindo. Me sinto sitiado. Todos os dias penso no futuro, em fazer algo com a minha vida. Vou continuar lutando até o fim da minha vida para tentar ajudar as crianças da minha comunidade”.

Muitas crianças menores, de 4 a 16 anos de idade, frequentam uma de várias escolas improvisadas, financiadas e administradas por ONGs locais e internacionais. Ro Yassin, que anteriormente ensinou inglês, física e química na escola de Kyet Yeo Pyinin, na província de Maungdaw, em Mianmar, agora leciona em uma das escolas dos campos.

Mas Yassin, que fugiu para Bangladesh junto com sua mãe, três irmãos e quatro irmãs em 2017, teme que essas escolas “não sejam suficientes”.

“Existem milhares de crianças aqui que precisam de educação”, diz Yassin, que acumulou uma grande coleção de livros em sua casa improvisada. “O que temos atualmente são escolas religiosas ou escolas que ensinam linguagem muito básica. Mas é importante que essas crianças sejam educadas para que possam crescer e se tornar uma geração consciente e forte, e não uma dependente. Se tivermos a oportunidade, podemos viver bem, como qualquer outra pessoa. Mas não temos essa oportunidade – nem aqui nem em Mianmar.”

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