Bombardeios em Mariupol, Ucrânia: “Cada dia é como perder sua vida inteira”

Sasha*, profissional de Médicos Sem Fronteiras (MSF) de Mariupol, cidade da Ucrânia cercada e bombardeada por forças russas, descreve a vida no local até o momento de sua partida.

Uma mulher caminha perto de um prédio destruído por um bombardeio em Mariupol. Ucrânia, 13 de março de 2022. | Foto: Evgeniy Maloletka/AP Photo

“Nasci em Mariupol e passei toda a minha vida em Mariupol. Eu estudei, trabalhei e me diverti em Mariupol. E quando MSF me contratou, fiquei feliz em fazer um trabalho significativo também. A vida era boa em Mariupol. Mas de repente tornou-se um verdadeiro inferno.

No início, nenhum de nós podia acreditar no que estava acontecendo, porque em nossos tempos, esse tipo de coisa simplesmente não deveria acontecer. Não esperávamos uma guerra e não esperávamos bombas. Pensamos que era só conversa na TV e que alguém impediria essa ‘loucura’ de acontecer. Quando percebi que estava realmente se tornando real, senti-me doente, tão doente, que não consegui comer por três dias.

No início, as coisas pareciam quase mais ou menos ‘normais’, mesmo sabendo que nada mais era normal. Mas, então, os bombardeios começaram, e nosso mundo como o conhecíamos não existia mais. Nossas vidas se entrelaçaram entre bombas e mísseis caindo do céu, destruindo tudo. Não podíamos pensar em mais nada e não podíamos sentir mais nada. Os dias da semana pararam de ter algum significado, eu não podia dizer se era sexta-feira ou sábado, era tudo apenas um longo pesadelo. Minha irmã tentou contar os dias, mas para mim foi tudo um borrão.

Nos primeiros dias, felizmente conseguimos doar alguns dos suprimentos médicos restantes de MSF para um departamento de emergência em Mariupol, mas quando a rede de eletricidade e o sinal do telefone caíram, não conseguimos mais entrar em contato com nossos colegas e não conseguimos realizar nenhum trabalho.

O bombardeio começou e piorou a cada dia. Nossos dias, então, consistiram em tentar permanecer vivos e tentar encontrar uma saída.

Como se pode descrever sua casa se tornando um lugar de terror? Havia novos cemitérios por toda a cidade, em quase todos os bairros. Mesmo no pequeno pátio do jardim de infância perto da minha casa, onde as crianças deveriam estar brincando. Como esse passado pode trazer um futuro para os nossos filhos? Como podemos aguentar mais dor e tristeza? Cada dia é como perder sua vida inteira.

Em Mariupol, fiquei comovido ao ver tantas pessoas ajudando os outros, com todos parecendo sempre se preocupar com outra pessoa e nunca por si mesmos. Mães preocupadas com seus filhos e filhos preocupados com os pais. Eu fiquei preocupado com minha irmã, ela estava tão estressada por causa dos bombardeios que pensei que seu coração pararia. Seu relógio fitness mostrou 180 batimentos cardíacos por minuto, e eu estava tão estressado em vê-la assim. Disse a ela que seria ‘estúpido’ se ela morresse de medo no meio de tudo isso. Com o tempo, ela se adaptou mais e, em vez de congelar de medo durante o bombardeio, ela me contou sobre todos os diferentes esconderijos em que conseguia pensar. Eu ainda estava extremamente preocupado com ela e estava claro que eu precisava tirá-la de lá.

Nos mudamos três vezes para encontrar o lugar mais seguro. Tivemos sorte, pois acabamos ficando com um grupo incrível de pessoas que agora considero minha família.

A história já provou que a humanidade sobrevive quando se mantém junta e se ajuda mutuamente. Eu vi isso com meus próprios olhos, o que realmente me comoveu.

Também fui levado a ver como as pessoas eram corajosas ou como elas tinham que ser corajosas. Lembro-me de uma família que estava cozinhando na rua, fora de sua casa. Apenas a alguns metros do fogo, estavam dois grandes buracos no chão de bombardeios que haviam atingido outra família apenas alguns dias antes.

Fiquei comovido ao ver como as pessoas se apegam à vida e ao que é bom. No Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, decidimos celebrá-lo apesar de tudo. Ligamos para os vizinhos e eles convidaram seus amigos. Alguém encontrou uma garrafa de champanhe e outra pessoa até fez um bolo com apenas metade dos ingredientes da receita disponível. Conseguimos até colocar alguns minutos de música. Durante meia hora, nós realmente sentimos a celebração e foi bom ser feliz e rir novamente. Até brincamos que esse pesadelo acabaria.

Mas continuou e parecia que nunca iria parar.

Tentávamos sair todos os dias, mas havia tantos rumores sobre o que estava acontecendo e o que não estava, que começamos a pensar que isso nunca aconteceria. Um dia, recebemos a informação de que um comboio estava indo embora. Corremos para o meu velho carro e nos apressamos para encontrar a partida do comboio. Passamos a informação ao máximo de pessoas que podíamos, mas agora estou cheio de tristeza quando penso naquelas para as quais não pude contar. Tudo correu tão rápido, e não podíamos ligar para ninguém porque não havia rede telefônica.

A partida foi uma grande confusão e de pânico, com muitos carros indo em todos os tipos de direções. Vimos um carro em que havia tantas pessoas que era impossível contá-las, seus rostos eram empurrados aos vidros das janelas. Não sei como conseguiram, mas espero que tenham conseguido. Não tínhamos nenhum mapa e temíamos ir na direção errada, mas de alguma forma, escolhemos o caminho certo e saímos de Mariupol.

Foi apenas quando tentamos deixar Mariupol que percebi que as coisas eram realmente piores do que eu pensava originalmente. Acontece que eu tive sorte de me abrigar em parte da cidade que foi relativamente poupada, mas na saída, vi muita destruição e tristeza. Vimos crateras gigantes entre blocos de apartamentos; supermercados, instalações médicas e escolas destruídos; até mesmo abrigos destruídos, onde as pessoas haviam procurado por segurança.

Estamos seguros por enquanto, mas não sabemos o que o futuro nos reserva. Quando finalmente tive acesso à internet, fiquei chocado ao ver fotos da minha amada cidade em chamas e meus concidadãos sob escombros. Nas notícias, eu li sobre o bombardeio do teatro de Mariupol, onde muitas famílias com crianças procuraram abrigo, e simplesmente não consigo encontrar as palavras para descrever como me senti com isso. Só posso questionar o porquê.

Não tivemos escolha a não ser deixar tantos entes queridos para trás. O pensamento de que eles e todos os outros ainda estão lá é difícil de suportar.

Meu coração dói de preocupação pela minha família. Tentei voltar para trazê-los, mas não consegui. Agora não tenho notícias deles.

As pessoas que estão juntas terão uma chance melhor de sobreviver, mas há muitos que estão por conta própria. Aqueles que são idosos e frágeis não podem andar quilômetros para encontrar água e comida. Como eles vão conseguir?

Não consigo parar de pensar em uma senhora idosa que conhecemos na rua há algumas semanas. Ela não estava andando bem e seus óculos estavam quebrados, então ela também não conseguia enxergar muito. A senhora pegou um pequeno celular e perguntou se poderíamos carregá-lo. Tentei fazer isso com a bateria do meu carro, mas não consegui. Eu disse a ela que a rede telefônica estava desligada e que ela não seria capaz de ligar para ninguém, mesmo que tivesse bateria [no celular].

‘Eu sei que não poderei ligar para ninguém’, disse ela. ‘Mas talvez um dia alguém queira me ligar’. Percebi que ela estava sozinha e que todas as suas esperanças estavam depositadas no celular. Talvez alguém esteja tentando ligar para ela. Talvez minha família esteja tentando me ligar. Não sabemos.

Faz pouco mais de um mês desde que esse pesadelo começou, e a situação piora a cada dia. As pessoas em Mariupol morrem todos os dias por causa de tiros, bombardeios e devido à falta de todas as necessidades básicas, como comida, água e acesso a cuidados de saúde. Civis inocentes lutam entre condições insuportáveis e dificuldades todos os dias, a cada hora e minuto. Apenas uma pequena parte deles conseguiu escapar, mas um grande número ainda está lá, escondido em edifícios destruídos ou em porões de casas arruinadas sem qualquer tipo de apoio de fora.

Por que tudo isso ainda acontece com pessoas inocentes? Até que ponto a humanidade deixará esse desastre continuar?”

* Por razões de segurança, ele está usando apenas seu primeiro nome.

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