Brasil precisa de marco legal para facilitar atuação humanitária

País pode ser referência regional para o enfrentamento de crises como a COVID-19

Foto: Diego Baravelli

Mais de um ano e meio após o início do que se tornou a maior operação de Médicos Sem Fronteiras em 30 anos de presença no Brasil, finalmente é possível respirar e, ao olhar para trás, refletir sobre esse período tão duro na história do país e, por consequência, também para nós.

Em resposta à pandemia de COVID-19, MSF implementou ações de emergência em 12 estados brasileiros, procurando aliviar o sofrimento de milhares de pessoas: pacientes, familiares, profissionais de saúde, sempre com foco em grupos com maior vulnerabilidade e dificuldade de acesso à saúde, dentre eles indígenas, povos e comunidades tradicionais, pessoas em situação de rua e migrantes.

Foram muitas lições aprendidas. Primeiro, trabalhar em parceria com o SUS (Sistema Único de Saúde) em estruturas já existentes e não próprias, o que difere do que fazemos em muitos outros países. Também enfrentamos o choque de perceber o desmantelamento da capacidade, no nível federal, de organizar uma resposta centralizada e coordenada.

Nossa organização se adapta aos contextos dos países onde atuamos, sempre respeitando os princípios humanitários de independência, imparcialidade e neutralidade. Assim, sabemos que atuar em países de renda média, como o Brasil, é bastante distinto de trabalhar em zonas de guerra ou em países com sistemas de saúde colapsados ou em construção. Nesses últimos, normas e políticas ainda estão em formação ou inexistem, o que exige utilizar guias e protocolos de atuação médica próprios ou da Organização Mundial da Saúde. Já em países como o Brasil, nos adaptamos a estruturas e normas (ou falta delas) que não foram pensadas para balizar a atuação em emergências, com a celeridade exigida nessas situações.

Essa realidade ficou evidente assim que começou a pandemia, quando MSF se viu desafiada a ampliar sua atuação. Na ausência de um interlocutor preparado a nível federal, descentralizamos nossa atuação, iniciando diálogos nos níveis estaduais e municipais.

Essa interação nos trouxe grandes aprendizados. Trabalhamos colaborativamente com o sistema universal público de saúde e encontramos profissionais competentes e dedicados, que atuaram em grande sintonia com nossas equipes. Autoridades, comunidades e empresas também colaboraram conosco, reconhecendo nossa idoneidade e independência.

Mas houve também muitas frustrações. Iniciar uma resposta de emergência sempre esbarrava em uma longa burocracia, inadequada à emergência, apesar de esforços de equipes e gestores locais. As etapas passavam por negociar localmente, assinar acordos que permitiriam o início de nosso trabalho médico e em cooperação com unidades públicas de saúde. O trâmite podia consumir semanas críticas, o que nos frustrava, porque já poderíamos estar salvando vidas, oferendo serviços médicos e apoiando as exaustas equipes do SUS.

Além disso, MSF teve que ampliar sua capacidade de compra e distribuição de medicamentos e insumos médicos e regulamentar essa prática em cada Estado de atuação, outro processo moroso. Regulações de exceção, como algumas portarias editadas pela Anvisa, foram decisivas para permitir, por exemplo, a importação de itens essenciais.  As medidas emergenciais salvaram vidas, mas não foram suficientes para manter nosso trabalho com a mesma agilidade, uma vez que em dado momento elas deixaram de vigorar. Percebemos então que não há nenhum tipo de regulamentação específica para organizações humanitárias como MSF realizarem esse tipo de atividade no país.

Também não havia previsão e nem exceções para entrada de trabalhadores humanitários, com fronteiras fechadas, o que nos fez negociar o ingresso de profissionais estrangeiros caso a caso por longos meses. E deslocar brasileiros de um estado a outro esbarrava nas dificuldades de negociação para registro em conselhos profissionais. Houve situações em que médicos chegavam a um estado e não podiam trabalhar, embora as necessidades fossem gritantes.

A verdade é que não há um arcabouço legal que permita a plena atuação de organizações humanitárias médicas no país. Os entraves atrasaram nossa resposta e custaram vidas preciosas. Mas vemos um inegável potencial de o Brasil ser referência na construção deste marco legal para a ajuda humanitária, inspirando outros países da América Latina e do Sul Global que infelizmente ainda podem enfrentar grandes desafios, especialmente com desastres socioambientais.

*este artigo foi publicado no El Pais

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