Burkina Faso: emergência humanitária é sem precedentes no país

Além dos níveis alarmantes de violência, deslocamentos e falta de assistência básica, 27 casos de coronavírus foram registrados em quase 10 dias

Burkina Faso: emergência humanitária é sem precedentes no país

Isabelle Defourny, diretora de operações de Médicos Sem Fronteiras (MSF), esteve recentemente em Burkina Faso e fala sobre a situação humanitária alarmante nas áreas mais afetadas por confrontos no país.

1) Qual é a extensão da crise humanitária e da violência em Burkina Faso?

Os primeiros ataques reivindicados por grupos jihadistas em Burkina Faso ocorreram em 2015. A deterioração extremamente rápida da situação de segurança nos últimos dois anos mergulhou o país em uma crise sem precedentes.

As zonas mais afetadas, como as regiões Norte, Centro-Norte e do Sahel, dificilmente passam um dia sem registrar nenhum episódio de violência. Além da luta entre os grupos armados e o exército nacional e seus aliados, a população civil é submetida a saques, assassinatos e massacres. O exemplo mais recente são os ataques a três vilarejos na província de Yatenga, na região Norte, no dia 8 de março, durante os quais, segundo o governo, pelo menos 43 pessoas foram mortas. A maioria das vítimas eram membros das comunidades Fulani, que são constantemente marginalizadas e alvo de membros de outras comunidades, que, em uma confusão perigosa, os assimilam ou acusam de conluio com organizações jihadistas. Nossas equipes, que ajudaram a tratar os sobreviventes dessa mais recente onda de ataques no hospital de Ouahigouya, realizam consultas médicas e distribuem água a milhares de pessoas que buscaram refúgio na principal cidade da província de Yatenga.

O número crescente de pessoas forçadas a fugir de casa também afeta gravemente outras comunidades em todo o país. No final de 2018, quase 48 mil pessoas foram deslocadas internamente. No final de 2019, eram 560 mil e, hoje, os números aumentaram para 780 mil. A projeção é de que, nos próximos meses, um milhão de pessoas possam ser deslocadas.

2) A assistência prestada por MSF e outras organizações é suficiente para atender às necessidades básicas das pessoas afetadas? O que fazemos neste tipo de ambiente?

A velocidade com que essa crise se agravou chocou as organizações humanitárias que estão em campo e é óbvio que não há ajuda suficiente. O deslocamento em massa de centena de milhares de pessoas também está pressionando a infraestrutura nas cidades onde se elas refugiaram. Por exemplo, em Titao, não há mais água suficiente. Nossas equipes estão perfurando poços e transportando água para distribuir para cerca de 10 mil habitantes locais e 20 mil deslocados, desde novembro de 2019, mas o abastecimento de 5 litros de água por pessoa por dia ainda não é garantido. Nossas equipes também distribuíram 3.600 kits de itens de primeira necessidade em Titao e Ouindigui. As autoridades locais e o Programa Mundial de Alimentos iniciaram a distribuição de alimentos no país, mas até agora as ações só atingiram apenas uma parcela das pessoas afetadas e contêm poucos alimentos que poderiam impedir a degradação nutricional.

O sistema de saúde está praticamente colapsado e a maioria das instalações médicas nas regiões do Sahel, Centro-Norte e Norte fechou ou mal consegue funcionar. Nós prestamos assistência médica em lugares como Barsalogho, Djibo, Ouahigouya, Titao e Ouindigui, mas, por causa da insegurança, continuar trabalhando é um desafio. Nossas equipes são reduzidas e algumas ficam confinadas nas cidades, porque não podem se locomover. Em outras áreas a circulação é mais fácil – como, por exemplo, em Boucle du Mouhoun, onde planejamos realizar uma campanha de vacinação contra o sarampo para 120 mil crianças, nos distritos de Dédougou e Boromo. No entanto, a situação pode se deteriorar rapidamente a qualquer momento.

Por fim, grande parte da população está exposta à violência. As pessoas vivem em áreas com intensa atividade militar e simplesmente não conseguimos chegar até elas. Não temos sequer as garantias de segurança mais básicas que precisamos para conseguir avaliar as necessidades e estabelecer uma resposta apropriada. Bahn e Solé, no norte de Titao, perto da fronteira com o Mali, são dois exemplos.

3) A situação humanitária já é alarmante e provavelmente deve piorar com o início do pico sazonal da malária e do ciclo de fome em junho. Um cenário catastrófico, mas é evitável?

Estamos fazendo da prevenção a nossa prioridade. Obviamente, devemos continuar a consolidar nossa presença, estabelecer redes e garantir que estejamos próximos da população, para tentar ampliar nosso acesso a mais regiões e oferecer ajuda sempre que necessário. Mas conseguimos chegar a centenas de milhares de pessoas abrigadas em vilarejos, cidades e acampamentos. Garantir a segurança é um problema, mas, ainda assim, é possível oferecer ajuda humanitária nessas áreas.

O período entre junho e outubro é sempre o mais crítico para as crianças da faixa do Sahel. É difícil imaginar as campanhas de distribuição de medicamentos este ano (chamadas quimioprevenção sazonal da malária), geralmente implementadas em Burkina Faso para evitar que o aumento exponencial nos casos de malária prossiga como de costume. Não podemos esquecer que a maioria das 780 mil pessoas deslocadas teve que deixar tudo para trás – suas terras, gado e recursos – e está sofrendo problemas econômicos graves, que dificultarão o enfrentamento do próximo ciclo de fome. O impacto do conflito na agricultura e no comércio é extremamente negativo. As comunidades locais que acolhem os deslocados em seus vilarejos também estão no limite.  

Restam alguns meses para fazer um esforço coletivo e efetivo de ajuda emergencial em grande escala para evitar a onda de mortalidade, que provavelmente começará em junho. Isso implica em fornecer água em quantidade suficiente, distribuir alimentos com suplementos nutricionais e garantir o acesso a cuidados médicos. O tempo ainda não acabou. Os esforços humanitários, e isso inclui a assistência de MSF, devem ser intensificados agora.

4) A primeira morte na África subsaariana de um paciente com coronavírus foi relatada em Burkina Faso. Outra grande preocupação?

Os primeiros casos apareceram em Ouagadougou no dia 9 de março, infectados pela Covid-19 na França, e foram rapidamente seguidos por outros – pelo menos 27 até o dia 18 de março. Isso é muito preocupante, pois o país já está enfrentando uma crise humanitária sem precedentes e com o sistema de saúde fragilizado.

Nossas equipes estão em contato com as autoridades para avaliar como podemos ajudar a conter o surto de Covid-19 e detectar e gerenciar casos. Nesse tipo de epidemia, os profissionais de saúde estão na linha de frente. Então, é fundamental garantir que eles estejam protegidos contra o risco de infecção e recebam atendimento médico adequado quando necessário.

Restrições de viagens e outras medidas para impedir a circulação de pessoas também são um desafio para nós. Elas podem limitar nossa capacidade de enviar pessoal experiente para Burkina Faso, cuja presença é agora necessária para ampliar a oferta de ajuda humanitária nas próximas semanas.

 

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