Carta de uma mãe que perdeu três filhos fugindo de conflitos no Sudão

“Tive que enterrá-los longe de casa. Longe de qualquer um que conhecessem”, conta Marta Kaliba.

Marta Kaliba no hospital de Renk, no Sudão do Sul. © Evani Debone/MSF

“Querido mundo,

Estou no hospital há três semanas, cuidando do meu filho de 8 anos e da minha filha de 5 anos, ambos sofrendo de desnutrição. Eles não são os mesmos de antes, de quando vivíamos em Cartum [capital do Sudão]. Eles estão recebendo alimentos e medicamentos especiais, e um médico verifica seus sinais vitais muitas vezes ao dia.

Nossas vidas mudaram em abril. Éramos uma família de oito pessoas que vivia em Cartum. Eu estava em casa cuidando dos meus seis filhos, e meu marido ganhava o suficiente como operário da construção civil. Meu filho mais novo era um bebê que eu ainda amamentava. É evidente que a nossa casa estava cheia, e as crianças corriam e brincavam por todo o lado. Tudo estava bem até ouvirmos as bombas e os tiros; vizinhos e pessoas que conhecíamos estavam morrendo.

Como família, decidimos sair. Meu marido ficou para trás, e meus seis filhos e eu embarcamos em uma viagem para o Sudão do Sul, o país de onde havíamos migrado originalmente. Pegamos um ônibus e, de um acampamento de deslocados para outro, começamos a nos movimentar.

Quando chegamos ao acampamento de Alagaya, no Sudão, as crianças começaram a adoecer. Elas tinham sarampo. O bebê foi o primeiro a ter febre. Depois de uma semana, o de 3 anos e, depois, o de 9 anos. Eles morreram.

Tive que enterrar meus três filhos longe de casa. Longe de qualquer um que conhecessem. Longe de onde estávamos indo.

Enquanto continuava minha jornada para o Sudão do Sul, cheguei a Renk, onde descobri que meu filho de 8 anos e minha filha de 5 anos estavam com desnutrição. A mudança na comida, a longa jornada e o luto têm sido árduos para mim e para minha família. Perdi três filhos e outros dois estão lutando por suas vidas.

Todos os dias no hospital, encontro forças para cuidar deles. Eu cozinho o que posso com as outras mães que também têm seus filhos no hospital. Sentamos debaixo de uma árvore. As outras crianças brincam: elas sobem em árvores, e mal posso esperar para que meus filhos estejam entre elas. Muitas famílias aqui lutam por comida e água. Quase ninguém tem um abrigo adequado.

Assim que meus filhos se sentirem melhor, meu marido se juntará a nós e continuaremos nossa jornada, talvez para Malakal, no Sudão do Sul. Tentarei entrar em contato com minha família no Sudão do Sul, mas não tenho certeza do futuro. Precisaremos de muita coragem e ajuda para sobreviver aos próximos dias difíceis para começar uma nova vida no Sudão do Sul.

Minha casa ainda estará meio cheia.

De sua companheira ser humano,

Marta Kaliba.”

No Sudão do Sul, malária e desnutrição aumentam entre pessoas que fogem dos conflitos no Sudão

A organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) está pedindo urgentemente uma resposta médica e humanitária melhor para as pessoas que fogem do conflito no Sudão e entram no Sudão do Sul através de Renk, uma cidade localizada no estado Alto Nilo, no extremo norte do país. Desde que os confrontos eclodiram no Sudão, cerca de 290 mil pessoas chegaram no Sudão do Sul – 80% delas através da fronteira de Joda, no estado do Alto Nilo.

Embora os centros de trânsito formais e informais em Renk sejam, teoricamente, um lugar temporário para as pessoas que chegam ao país, os repatriados podem passar semanas ou mesmo meses lá. Essa estadia é muitas vezes exaustiva e dolorosa, uma vez que o acesso a alimentos, abrigo, água, saneamento e cuidados de saúde é limitado.

 

 

MSF está apoiando o hospital civil de Renk na ala destinada ao isolamento de pacientes com sarampo, no centro de nutrição terapêutica intensiva e no departamento de pediatria. Devido ao fluxo de pacientes, as equipes ampliaram a capacidade das enfermarias de 22 para 45 leitos. Desde julho, MSF admitiu 232 pacientes com desnutrição e tratou 282 casos de sarampo que precisaram de cuidados hospitalares.

Daniel Deng, educador de saúde comunitária de MSF  conduz uma sessão de conscientização sobre malária, sarampo e desnutrição na clínica móvel de Abukadra, no estado do Alto Nilo. ©Evani Debone/MSF

“Infelizmente, a assistência em Renk é extremamente inadequada em comparação com as necessidades, que estão crescendo a cada dia. Pedimos aos grupos humanitários e médicos que façam mais, fortalecendo as atividades médicas e humanitárias no ponto de entrada e nos centros de trânsito. Os serviços básicos de saúde precisam ser disponibilizados em todas as situações na fronteira para aqueles que chegam com problemas médicos. Um programa sistemático de atualização da vacinação também deve ser disponibilizado na fronteira 24 horas por dia, sete dias por semana, tendo em vista a atual baixa cobertura vacinal no Sudão e o surto contínuo de sarampo em ambos os países”, diz Jocelyn Yapi, coordenador-geral de MSF no Sudão do Sul.

Shadia Paulo, enfermeira de MSF, examina criança no centro de nutrição terapêutica em Renk. ©Evani Debone/MSF

 Oferta limitada de alimentos e condições de vida deploráveis

Muitas pessoas, especialmente crianças, estão chegando à fronteira em condições de saúde alarmantes, apresentando doenças mortais como sarampo ou desnutrição, que requerem cuidados médicos imediatos. Em meio à estação chuvosa, as instalações médicas de MSF na área estão registrando uma taxa de positividade de 70% para a malária, a doença que mais mata no Sudão do Sul.

“As crianças com desnutrição, em particular, precisam receber apoio nutricional urgente na fronteira e serem imediatamente transferidas para as instalações médicas”, diz Yapi. “Itens como redes mosquiteiras, lonas de plástico e outros recursos essenciais não alimentares precisam ser fornecidos na fronteira para que ninguém que esteja em necessidade fique de fora.”

Embora as pessoas recebam um benefício único em dinheiro de 12 dólares (cerca de 62 reais) por pessoa, considerando os altos preços – uma refeição normal é vendida em média por 2 dólares em Renk -, essa quantia dificilmente é suficiente para pagar uma refeição por dia durante uma semana.

As pessoas ficam semanas e às vezes meses sem assistência adicional em dinheiro e não há distribuição regular de alimentos pelas organizações humanitárias ou pelas autoridades na área.

“Estou vendendo minhas roupas por 2 mil libras sul-sudanesas (2 dólares) por peça para comprar comida. Vendi seis delas e saí com as duas restantes para vestir”, contou Marta Manher, mãe de seis filhos, moradora do Zero, um dos assentamentos não oficiais para repatriados em Renk.

A alimentação limitada e as condições de vida deploráveis estão afetando o estado de saúde das pessoas. Em duas das clínicas móveis administradas por MSF em Zero e Abukadra, as equipes estão registrando 300 consultas médicas por dia. Sete em cada 10 são de pacientes com malária.

A maioria das pessoas vive a céu aberto ou em abrigos temporários feitos de roupas. Nessa área, poças de água da chuva estagnada fornecem locais de reprodução ideais para mosquitos, e as pessoas não têm redes mosquiteiras ou outros meios de proteção.

Pessoas na fila para coletar água em um ponto de abastecimento no centro de trânsito de Renk. ©Evani Debone/MSF

 É necessária uma resposta humanitária urgente

No hospital civil de Renk, onde MSF apoia a ala de isolamento do sarampo, 90% dos pacientes são pessoas que estão retornando ao Sudão do Sul e não foram vacinados. Além disso, alguns pacientes gravemente doentes estão sendo transferidos sem assistência médica para Malakal, numa viagem de 48 a 72 horas em barcos sem assistência médica, água ou comida.

Foram registradas mortes em barcos e as equipes de MSF estão recebendo pacientes gravemente doentes no centro de trânsito de Bulukat, resultando em uma taxa de mortalidade mais alta nas instalações em Malakal.

“A comunidade de repatriados se encontra em uma situação muito vulnerável. Além de comida e água potável insuficientes, eles não têm abrigos, pois usam pedaços de pano para se proteger do sol e da chuva. Ao tratarmos crianças com desnutrição no hospital, vemos que muitas mães também estão desnutridas”, diz Abraham Anhieny, médico de MSF em Renk.

Anos de conflito causaram uma das maiores crises humanitárias do mundo no Sudão do Sul. Como o país já sofre com surtos regulares de doenças, inundações, deslocamentos e altas taxas de desnutrição, a chegada de repatriados é mais um fator, e a resposta atual é incapaz de absorver necessidades adicionais.

O país precisa de mais atenção e apoio para lidar com a crise humanitária em curso e a emergência causada pelo conflito no Sudão.

 

 

 

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