Cinco relatos sobre violência e exclusão de direitos na fronteira entre Itália e França

Migrantes na cidade de Ventimiglia, na Itália, contam o que viveram: “Me algemaram mesmo sem motivo”.

Sem assistência, migrantes vivem em locais improvisados nas ruas de Ventimiglia. Foto: Candida Lobes/MSF

Em Ventimiglia, cidade italiana na fronteira com a França, centenas de pessoas migrantes relataram violências, prisões arbitrárias e tratamento desumano por parte da polícia francesa. Ao tentarem entrar na França para seguir em direção a outros países europeus, os migrantes são empurrados de volta pela polícia para Ventimiglia, onde, em abrigos improvisados nas ruas, eles enfrentam dificuldades no acesso a cuidados médicos, alimentos e água potável. Compartilhamos aqui os relatos de cinco pessoas que enfrentaram separação familiar, violência, ameaças e humilhações na fronteira entre Itália e França.

 Meu filho está chorando, ele quer a mãe, e eu não posso entrar em contato porque ela não tem telefone.”

 – Relato de um migrante da Costa do Marfim atendido por MSF.

“Fomos parados pela polícia em Nice [na França]. Minha mulher está grávida. Ela foi levada para o hospital porque desmaiou enquanto a algemavam. Meu filho de 2 anos de idade e eu fomos levados para a delegacia de fronteira em Menton [na França]. Passamos a noite no frio e, pela manhã, fomos expulsos e levados para a Itália, sem notícias dela. Meu filho está chorando, ele quer a mãe, e eu não posso entrar em contato porque ela não tem telefone.”

 Como alguém que precisa de ajuda pode ser tratado dessa maneira?”

 – Joseph*, da Costa do Marfim

 

Joseph com a esposa e os dois filhos.

 

O Mar Mediterrâneo é vida ou morte. Nossa viagem era muito perigosa – poderia ter significado a morte para nós. Mas, junto com minha mulher e meus filhos, decidi correr esse risco.

Sou da Costa do Marfim e tenho dois filhos: uma menina de 8 meses e um menino de 2 anos. Minha mulher e eu passamos seis anos na Tunísia, mas fomos forçados a sair depois que o presidente tunisiano fez declarações racistas contra os africanos subsaarianos e começou uma verdadeira perseguição às pessoas negras.

A polícia tunisiana confiscou todo o meu dinheiro e um dia me vi preso, embora não tivesse cometido nenhum crime. Fiquei preso por vinte e oito dias e, durante esse período, não pude nem ligar para minha mulher. A Tunísia não era mais um lugar seguro para se estar. Fomos expulsos de nossa casa e perdi meu emprego. Eu não podia voltar [para a Costa do Marfim] de mãos vazias, então decidimos tentar atravessar o Mar Mediterrâneo e chegar à Europa.

 

 

Tentamos atravessar o mar duas vezes. Em nossa primeira tentativa, voltamos para a costa da Tunísia depois de ver outro barco virar. Das 47 pessoas a bordo, apenas seis sobreviveram. Na segunda tentativa, éramos 42 pessoas viajando à noite. Muitas pessoas caíram na água, inclusive minha mulher e minha filha, e quatro pessoas morreram.

Por fim, a guarda costeira italiana nos resgatou e nos levou para Lampedusa. Agora estamos aqui em Ventimiglia, porque gostaríamos de entrar na França. Falamos francês e temos amigos lá, que podem nos ajudar. Aqui [na Itália], se eu tiver um problema, ninguém me entende. Durante três dias, meu filho teve febre e não consegui me comunicar com ninguém para obter ajuda.

 

 

Já cruzamos a fronteira uma vez, mas fomos parados em Menton. Eles nos levaram para a delegacia de polícia e passamos a noite lá. Estávamos amontoados. Nem mesmo as crianças tinham espaço para dormir. Era sujo e não havia colchões, não havia nada. No dia seguinte, a polícia nos mandou de volta para a Itália.

Como alguém que precisa de ajuda pode ser tratado dessa maneira? Esperávamos que os países da Europa ajudassem as pessoas que precisam, mas se eles se recusam a nos ajudar também, não sabemos para onde ir.

Tentaremos novamente cruzar a fronteira. Depois de superar tantos obstáculos, não posso parar agora.”

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Me senti muito envergonhada por ser tratada daquela forma na frente de tantas pessoas.”

– Relato de uma migrante da Guiné atendida por MSF.

“Tentei chegar à França de trem, mas a polícia me obrigou a descer na estação de Menton. Na plataforma, uma policial começou a me insultar, dizendo que eu estava fingindo estar grávida, porque era isso que ‘nós, migrantes, sempre fazemos’. Ela [a policial] começou a apalpar minha barriga com as mãos para ver se eu realmente estava grávida. Isso me machucou, e me senti muito envergonhada por ser tratada daquela forma na frente de tantas pessoas.”

Eles me algemaram mesmo sem motivo. Quando pedi uma explicação, o policial me empurrou e machuquei meu tornozelo.”

 – Relato de um migrante do Mali atendido por MSF.

“Eles me pegaram no trem em Menton pela segunda vez. Eu estava com outro homem, os policiais nos fizeram descer do trem, dizendo que não tínhamos o direito de estar na França e que teriam alertado nossas embaixadas para repatriação. Eles me algemaram mesmo sem motivo. Quando pedi uma explicação, o policial me empurrou e machuquei meu tornozelo. Ao insistir em saber o porquê de seu comportamento, ele me bateu no rosto. Passei a noite em um contêiner com outras pessoas, inclusive mulheres e crianças. Não nos deram comida nem água até o dia seguinte, às 13 horas, quando nos liberaram. O policial assinou o documento de recusa da minha entrada na França.”

Não podia viver assim, então decidi fugir. Parti quando tinha 16 anos, sozinha.”

– Maité*, da Guiné.

 

Maité*, migrante da Guiné.

 

“Deixei a Guiné há quatro anos. Depois que meus pais morreram, passei a morar com minha tia. Quando tinha 15 anos, ela me disse que era hora de me casar e escolheu um marido para mim. O meu marido me batia todos os dias. Ele era violento, e fui parar no hospital muitas vezes. Quatro anos se passaram e ainda tenho as cicatrizes no meu corpo.

Não podia viver assim, então decidi fugir. Parti quando tinha 16 anos, sozinha. Atravessei o Mali e depois a Argélia. Demorei pelo menos dois meses para atravessar o deserto. Na maior parte do tempo, não tínhamos comida nem água suficientes.

Na viagem do Mali para a Argélia, [os contrabandistas] me mantiveram em um prédio abandonado no deserto por duas semanas. Queriam que eu pagasse mais dinheiro, mas eu não tinha ninguém para ligar e pedir dinheiro. Eles me ameaçaram, bateram em mim e me deixaram sem comida. Por fim, me libertaram, mas logo fui parar em outra prisão por pelo menos uma semana.

 

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Quando finalmente consegui entrar na Argélia, [as forças armadas] me mandaram de volta para o Níger. Depois disso, consegui chegar à Argélia, mas a vida não era nada fácil e decidi atravessar o deserto da Argélia para a Tunísia. Você atravessa o deserto para evitar a polícia. Se eles te encontram na Argélia, te mandam de volta para o Níger e, se você estiver na Tunísia, te mandam de volta para a Argélia, e você tem que começar a caminhar novamente. Andei pelo deserto durante quase uma semana, com mais cinco pessoas. Caminhávamos durante a noite e procurávamos um lugar para nos abrigarmos de manhã cedo. Tínhamos apenas água e alguns biscoitos. Foi assim que cheguei à Tunísia.

Passei três anos na Tunísia, trabalhando em restaurantes, fazendo faxina e tentando ganhar dinheiro para chegar à Europa atravessando o Mar Mediterrâneo.

A travessia marítima foi difícil. Éramos 45 pessoas em um barco de oito metros de comprimento. Passamos dois dias no mar sem comida, até que um navio nos resgatou. Eles nos levaram para Lampedusa. Da Sicília, decidi continuar a viagem para a França.

Viajei de trem para Ventimiglia. Quero ir para França e começar a estudar. Sem educação não se chega a lugar nenhum, e quero fazer algo bom em minha vida.”

 

A situação das pessoas em trânsito em Ventimiglia é consequência direta das políticas migratórias da União Europeia, que precisam priorizar os direitos fundamentais dos migrantes e garantir proteção internacional.

*Nomes alterados para proteção.

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