Cobertura universal de saúde: planejamentos desconsideram as pessoas em situação de maior vulnerabilidade

Assunto será debatido na Assembleia Geral da ONU; relatório de MSF destaca barreiras no acesso à saúde em cerca de 20 países.

MSB124932- Atija Bacar, que trabalha com MSF, caminha pelo acampamento de deslocados de Eduardo Mondlane, em Moçambique, para orientar mulheres grávidas e lactantes. Ela também vive no local. © Mariana Abdalla/MSF

A cobertura universal de saúde – o compromisso de que até 2030 os serviços de saúde adequados estarão disponíveis para todos, sem causar sobrecarga financeira – é um dos principais tópicos de saúde para a 78ª Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), que ocorre em Nova York, de 19 a 26 de setembro. Médicos Sem Fronteiras (MSF) se preocupa, no entanto, que o atual planejamento para uma cobertura universal de saúde esteja desconsiderando as próprias pessoas que agora se encontram mais excluídas do acesso aos cuidados de saúde. Um relatório de MSF* destaca as barreiras de acesso a cuidados oportunos a preços acessíveis que as pessoas enfrentam em cerca de 20 países.

Uma Reunião de Alto Nível discutirá a cobertura universal de saúde como um instrumento importante para alcançar o terceiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável**: saúde e bem-estar. No entanto, as formas como os países estão desenvolvendo e implementando planos para a cobertura universal muitas vezes não consideram as necessidades de saúde de alguns dos grupos em situação de maior vulnerabilidade, como as pessoas que se veem obrigadas a abdicar dos cuidados porque não têm condições de arcar com os custos, migrantes, refugiados e comunidades que vivem em cenários de crise.

Para fazer progressos sérios na cobertura universal de saúde, as abordagens atuais precisam ser adaptadas, com uma escolha clara em direção a resultados tangíveis para as pessoas atualmente excluídas do acesso aos cuidados.

É muito irônico que as pessoas que mais precisam muitas vezes não sejam consideradas nos planos de cobertura universal de saúde. As despesas com tratamentos, exames, consultas e gastos extras com as quais os pacientes precisam arcar para acessar serviços médicos fazem com que eles atrasem ou renunciem completamente a esses serviços. O cuidado perdido não é analisado no monitoramento da cobertura universal de saúde, ignorando as consequências de serviços inacessíveis para a saúde.

 

Desafios financeiros

As equipes de MSF ao redor do mundo observam como os pacientes são solicitados a pagar por medicamentos e cuidados essenciais em serviços públicos, mesmo em locais com políticas que declaram atendimento gratuito.

Quando meu filho estava doente, a clínica pública não nos dava todos os medicamentos. Era difícil pagar o transporte para a cidade, por isso fomos a clínicas privadas. Agora meu filho está pior e devemos muito dinheiro”.

– Mãe de paciente em Herat, Afeganistão.

As iniciativas existentes de isenção de taxas, como para mulheres e crianças, pacientes com tuberculose, HIV, doenças crônicas ou malária – fundamentais para o progresso no acesso aos cuidados e para melhorias na incidência da doença e de mortes – são prejudicadas por deficiências no financiamento e falta de verificação independente.

Quando faltam suprimentos médicos nos serviços públicos, os pacientes são forçados a procurar medicamentos em estabelecimentos privados a valores mais altos ou a ficar sem os remédios que necessitam. Pacientes que não podem pagar suas contas hospitalares são retidos ou até mesmo detidos.

 

Migrantes e refugiados

Outro grupo cujas necessidades de saúde são muitas vezes ignoradas são os migrantes, incluindo refugiados e pessoas sem documentos. Uma em cada oito pessoas hoje é migrante ou foi deslocada à força. Essas pessoas geralmente estão em pior estado de saúde, e os sistemas de saúde precisam ser adaptados para fornecer cuidados adequados. No entanto, as experiências de MSF em países como Bélgica, Itália, Polônia, Grécia, Líbano e África do Sul mostram que os migrantes enfrentam barreiras significativas para acessar até mesmo serviços essenciais e urgentes, em alguns casos, mesmo quando o ambiente político prevê isso explicitamente.

Procedimentos complexos e obstáculos administrativos bloqueiam o acesso a cuidados oportunos. Os planos nacionais para implementar a cobertura universal de saúde precisam incluir medidas explícitas para erradicar as várias barreiras ao acesso das pessoas a esses serviços.

 

Situações de crise

Em terceiro lugar, os planos de cobertura universal de saúde muitas vezes não conseguem prever adaptações durante situações de crise, como conflitos, surtos de doenças e desastres socioambientais.

Durante essas crises, a vulnerabilidade pré-existente e as lacunas nos serviços médicos muitas vezes pioram. As barreiras de cuidados de saúde para grupos em situação de vulnerabilidade são desproporcionalmente agravadas. A continuidade do tratamento é um desafio específico em tempos de crise, em particular para pessoas que vivem com HIV, tuberculose ou doenças crônicas.

Não fui ao hospital porque havia confrontos no bairro. As gangues não deixavam ninguém passar. Entrei em contato com uma enfermeira para tratar minhas feridas, mas era caro… e eu não tinha dinheiro”.

– Paciente em Porto Príncipe, Haiti.

Faltam nos planos nacionais da cobertura universal de saúde medidas para proteger as pessoas em tais crises em muitos lugares, bem como ações para garantir o acesso a cuidados essenciais, para necessidades de saúde existentes e novas.

 

Mudanças são urgentes

As experiências de MSF mostram as barreiras que algumas das pessoas em situação de maior exclusão, discriminação e vulnerabilidade enfrentam no acesso aos cuidados de saúde. No entanto, a atual agenda e a maioria dos planos nacionais para a cobertura universal de saúde ficam aquém do princípio de “não deixar ninguém para trás” da ONU.

Não há atenção suficiente para pessoas que precisam abdicar dos cuidados, bem como para migrantes, refugiados e pessoas em situações de crise.

É urgente priorizar mudanças reais e resultados tangíveis no acesso aos serviços de saúde – incluindo, principalmente, as pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Enquanto esses grupos estiverem ausentes das metas da cobertura universal de saúde, não haverá real progresso.

 

*Veja o relatório de MSF: ‘Fora da Cobertura Universal de Saúde: deixando os que estão em situação de maior vulnerabilidade para trás’ (em inglês)

** Segundo a ONU, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um “apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”.

 

 

 

 

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