Como a crise climática impacta a atuação médico-humanitária de MSF

Com projetos em alguns dos ambientes mais vulneráveis ao clima do mundo, MSF participa da COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021

Foto: Mohammad Ghannam/MSF

As mudanças climáticas têm sido descritas como a maior ameaça global à saúde do século XXI. As evidências científicas das alterações climáticas são incontestáveis, e a magnitude das consequências já não pode ser ignorada. Evidências mostram claramente que iremos assistir a um aumento da temperatura e do nível do mar, eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos, como chuvas fortes, ondas de calor, ciclones, secas e inundações.

Algumas regiões são mais vulneráveis às mudanças climáticas, como o sul da Ásia e a região do Pacífico, o Oriente Médico, o Cinturão do Sahel, o sul da África e a América Central. Na Austrália, já testemunhamos uma seca e incêndios florestais sem precedentes, que os cientistas associaram às alterações climáticas.

Os impactos médicos da emergência climática

Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha em alguns dos ambientes mais vulneráveis ao clima do mundo, onde as pessoas – que são as menos responsáveis pelas emissões que geram a crise climática e, ainda assim, suportam o peso de seus efeitos –  já não têm acesso a cuidados básicos de saúde.

Em muitos países onde MSF trabalha, nossas equipes médico-humanitárias já estão respondendo a situações relacionadas às mudanças no meio ambiente. Isso inclui o aumento de doenças infecciosas, como malária, dengue e cólera, como resultado de mudanças nos padrões de chuva e temperatura; aumento das doenças zoonóticas (transmitidas entre animais e pessoas) devido à pressão crescente sobre o meio ambiente e eventos climáticos extremos mais frequentes, como ciclones, furacões e desnutrição causada por secas.

Seca e insegurança hídrica

A seca apresenta múltiplos riscos para a saúde, ameaçando o abastecimento de água potável, saneamento e produtividade agrícola e pecuária, além de aumentar o risco de incêndios florestais. Consequentemente, as secas aumentam a insegurança alimentar e a desnutriçãoo que pode causar atraso de crescimento, rápida perda de peso e morte de crianças. Os modelos atuais preveem que a mudança climática agravará severamente a escassez de água em todo o mundo. Em 2021, a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou que Madagascar estava prestes a enfrentar a primeira crise climática de fome no mundo. Três anos consecutivos de seca afetaram gravemente as colheitas e o acesso aos alimentos nas regiões desérticas do sul de Madagascar. A seca também exacerbou a “estação de escassez” (período entre o plantio e a colheita) anual, resultando em uma crise alimentar e nutricional aguda. Em resposta, MSF lançou um programa médico-nutricional para examinar e tratar comunidades para desnutrição aguda.

Foto: Ainga Razafy/MSF

Eventos ambientais extremos relacionados ao clima

De acordo com o Lancet Countdown on Climate and Health 2020, as mudanças climáticas influenciaram em 76 inundações, secas, tempestades e picos de temperatura entre 2015 e 2020. Em 2019, MSF lançou uma grande operação de emergência em Moçambique após as inundações devastadoras causadas pelo ciclone Idai. Algumas semanas depois, com as pessoas ainda sofrendo com o desastre, um segundo ciclone atingiu o país. Foi a primeira vez na história que houve registro de dois ciclones atingindo Moçambique em uma única temporada. A escala dos danos causados por esses desastres consecutivos foi um alerta para se preparar para ciclones tropicais de alto impacto, inundações costeiras e chuvas intensas ligadas às mudanças climáticas, de acordo com um comunicado da Organização Meteorológica Mundial, uma agência da ONU.

Foto: MSF/Pablo Garrigos

Doenças infecciosas afetadas pelo clima

Temperaturas mais altas, como as associadas às mudanças climáticas, aumentam a incidência de doenças transmitidas por água e alimentos, como hepatite, gastroenterite viral e cólera. A mudança climática também tem sido associada à disseminação de vetores de doenças infecciosas, incluindo mosquitos e carrapatos, levando a prováveis aumentos de malária, dengue e doença de Lyme. Honduras, considerado um ponto crucial da mudança climática, está enfrentando seu pior surto de dengue em 50 anos após uma prolongada estação chuvosa.

MSF tratou mais de 5 mil pacientes, principalmente crianças com menos de 15 anos de idade que viviam em áreas urbanas empobrecidas, durante a epidemia de dengue. A dengue grave afeta a maioria dos países latino-americanos e asiáticos, sendo uma das principais causas de hospitalização e morte nessas regiões. A incidência da doença cresceu dramaticamente nas últimas décadas, em parte devido ao aquecimento das temperaturas e à disseminação associada das espécies de mosquitos que transmitem e propagam a dengue. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de metade da população mundial está em risco, com uma estimativa de 100 a 400 milhões de infecções a cada ano.

Nossas equipes observaram picos de casos de malária em vários países subsaarianos em comparação com as médias de longo prazo. As evidências sugerem que a incidência e prevalência da malária irão aumentar, particularmente na África. MSF está muito preocupada por estar observando casos de malária em regiões onde os mosquitos não estavam presentes, como as montanhas da Etiópia.

Foto: Mario Fawaz/MSF

Migração climática e deslocamento populacional

A mudança climática está influenciando cada vez mais a mobilidade humana à medida que mais lugares se tornam inabitáveis. Milhões de pessoas estão atualmente se mudando e as condições que criam esse deslocamento provavelmente serão agravadas pelas mudanças climáticas. Espera-se que a maior parte da migração relacionada ao clima ocorra dentro das fronteiras nacionais e em direção às áreas urbanas, onde as pessoas podem enfrentar o desafio de viver em periferias superlotadas e pouco higiênicas. Estima-se que dois bilhões e meio de pessoas sejam acrescentadas aos ambientes urbanos até 2050, com 90% desse aumento ocorrendo na Ásia e na África. As regiões que passam por fortes choques climáticos costumam abrigar comunidades densamente povoadas e empobrecidas. Esses locais de pontos críticos incluem grandes deltas de rios no Sul da Ásia; regiões semiáridas na África e no Oriente Médio; geleiras e bacias hidrográficas na Ásia Central; ilhas baixas e regiões costeiras vulneráveis ao aumento do nível do mar; e áreas cada vez mais afetadas por eventos climáticos extremos, incluindo América Central, Caribe e Pacífico. MSF tem operações de grande escala em vários desses locais de pontos críticos climáticos e responde continuamente ao deslocamento da população causado por tempestades, enchentes e secas, incluindo no Haiti, Bangladesh, Nigéria, Somália e Iêmen.

Médicos Sem Fronteiras na COP26

Pela primeira vez, MSF está participando da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP). A COP26 é a 26ª conferência desde que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática foi criada em 1994, e a COP mais importante desde Paris em 2015, quando os países se comprometeram a limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2 graus (de preferência 1,5 graus). Esta conferência é importante porque os países apresentarão seus planos climáticos para atingir esta meta coletiva.

Nosso objetivo para participar da COP26 é observar, aprender e se engajar com outros atores da saúde e demais áreas participantes. Nossa mensagem está concentrada nos impactos que a emergência climática já está tendo sobre as populações mais vulneráveis. As organizações humanitárias respondem às crises independentemente da causa, mas apenas seus esforços não irão compensar a inação dos líderes políticos. Somente uma ação política concreta pode implementar soluções para limitar o aquecimento global e evitar consequências humanas desastrosas.

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